Por um imaginário coerente de Jesus e condizente com a fé

Hoje em dia, em tempos chamados de “pós-modernos”, estamos vivendo num mundo cheio de “perplexidades”: de um lado notamos ainda um crescente interesse em religião, sim uma verdadeira efervescência de sentimentos religiosos e buscas de “experiências religiosas”. As pessoas têm uma sede ardente de “sentir Deus”. Tal sede frequentemente os leva a um tipo de sincretismo religioso de cunho esotérico que representa uma prática de “retalhar”, de forma individualista, sua própria religião de diferentes elementos de diversas crenças religiosas.  Em clima de atual competitividade onipresente e vinculado a  um ferveroso impulso missionário bastante questionável, tal prática religiosa assume a forma de uma verdadeira “luta dos deuses” (para lembrar uma expressão de Max Weber).
Por outro lado, sobretudo na ótica da Igreja Católica e das Igrejas da Reforma, chama atenção  a evasão contínua de fiéis, uma tendência de desinstitucionalizar a vivência religiosa, um crescente desinteresse pela doutrina, pela compreensão de sua fé como pelo código moral defendido pela Igreja. Tal evasão desemboca na flutuação de fiéis (ou crentes) entre as mais diversas igrejas ditas “cristãs” em uma espécie de “teste de degustação” do sentimento religioso, especialmente nas periferias das “megalópoles” urbanas - para, enfim, terminar em desistência de qualquer prática comunitário-eclesial.
Depois que, ao menos para boa parte da população mundial, se vaporizaram a certeza absoluta do conhecimento científico e a crença ingênua e ilimitada no potencial tecnológico e no crescimento econômico do homem em função de uma solução definitiva dos problemas que atormentam a humanidade, também os cristãos se vêem diante de uma consciência de uma fé infantilizada, enfraquecida e fragmentada e andam confusos em o que realmente acreditar.
Tal confusão se manifesta especialmente com relação à figura  (histórica) e às imagens (religiosas) de Jesus Cristo, confusão reforçada por pesquisas pouco sérias, publicadas de forma sensacionalista em livros e artigos de revistas (“Super-Interessante, “Época”, “Veja” etc). Como fontes de inspiração muitas vezes servem os apócrifos recém-publicados (cf. a “descoberta” do Evangelho de Judas). Sem muitos desses autores terem clareza da distinção entre o que a tradição de pesquisa bíblico-cristológica chama o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé”, descreditam, em repugnância polêmica às doutrinas cristológicas da Igreja (como a respeito da virgindade de Maria, dos milagres e da ressurreição de Jesus, das aparições e do túmulo vazio etc.), uma compreensão coerente e libertadora da fé da Igreja.
No prefácio de seu livro “O Jesus Histórico: um Manual” (Edições Loyola, 2002, p. 13), Gerd Theissen e Anette Merz iniciam sua pesquisa com referência a esse clima religioso atual e sua repercussão para imagens hodiernas de Jesus de Nazaré que circulam em nosso meio:
"Em época recente, o estudo do Jesus histórico muitas vezes se vinculou com a mensagem de que não era teologicamente importante dedicar-lhe um exame detalhado. Decisivo era o Cristo anunciado, e bastava assegurar-se de que ele não estava em contradição com o que sabemos sobre o Jesus histórico – o que era muito pouco. Tal mensagem encontrou repercussão. Hoje muitas pessoas ficam perdidas, quando tentam esclarecer com argumentos o que sabemos sobre o Jesus histórico, o que apenas conjeturamos e o que não podemos saber. Trabalhos que pretendem expor o verdadeiro Jesus por trás dos supostos falseamentos da Igreja preenchem essa lacuna do mercado de conhecimento, em forma de livros edificantes que, a partir dos anseios religiosos e valores éticos de nosso tempo, acabam por criar um novo Jesus. De ambos os lados, o trabalho paciente da pesquisa está sendo desconsiderado. Mas numa sociedade esclarecida e uma Igreja aberta, que deseja prestar conta de seus próprios fundamentos, este trabalho se impõe."
Por isso é tarefa da formação catequético-teológica hoje, como sempre foi desde as advertências de Paulo em suas cartas contra uma falsa “espiritualização” da fé em Cristo bem como dos autores dos evangelhos contra um esquecimento da humanidade de Jesus de Nazaré, uma fundamental “desmitologização” (ou desmitificação) dos imaginários de Jesus Cristo. Contrariando uma falsa estilização religiosa de Jesus de Nazaré (especialmente de sua morte de cruz), afirma Paulo em 1 Cor 1,23: “nós, porém, anunciamos Cristo crucificado” e em 1 Cor 2,2: “Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado.” Além dessas tendências – ontem como hoje “neognósticas” ou “esotéricas” – temos que nos deparar dentro das próprias comunidades cristãs e fora delas, por causa do espírito científico-moderno, com uma certa “materialização” de nossa fé em Jesus. Esta parte de uma concepção historicista das fontes kerygmáticas - o que desemboca inevitavelmente em “fundamentalismo”. E isso significa, nas palavras de Paulo em outro contexto, “tornar inútil a cruz de Cristo” (1 Cor 1,17).
Por essa razão, haveremos de re-criar um imaginário de Jesus que seja coerente com nossa profissão de fé nele como o “Cristo” e “Filho de Deus”, o "Verbo encarnado". Senão, temos de nos deparar com as palavras severas de Paulo em 1 Cor 11,4: “Com efeito, se vem alguém e vos proclama outro Jesus diferente daquele que recebestes ou um evangelho diverso daquele que vos proclamamos, ou se acolheis um espírito diverso do que recebestes ou um evangelho diverso daquele que abraçastes, vós o suportais de bom grado” (cf. também Gl 1,3-6).

Michael Kosubek, teólogo e integrante do Movimento de Formação Cristã de Fortaleza
(michaelkosubek@oi.com.br)
 

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