O SONHO DE NABUCODONOSOR - Frei Betto

Os países ricos do  Ocidente, cuja democracia se baseia no poder do dinheiro, não têm princípios,  apenas interesses. Acusam Cuba de ser uma ditadura que não respeita os  direitos humanos por não admitirem o caráter socialista daquela Revolução que,  há mais de 50 anos, resiste às agressões do maior império econômico e bélico  da história da humanidade. 

No entanto, tecem loas à China. Fazem  vista grossa ao regime escravocrata de mão de obra barata, onde se fabrica  tudo aquilo que, no Ocidente, exigiria pagar salários mais altos, reduzindo a  margem de lucro das empresas ocidentais. Inúmeros produtos em oferta em nossas  lojas, embora grifadas por marcas originárias do Ocidente, são “made in  China”. 

Para governos como o dos EUA, do Reino Unido, da França e da Alemanha, o fato de um ditador como Hosni Mubarak ocupar, por 30 anos, o  poder no Egito, não tem a menor importância. Desde que sirva a seus interesses  geopolíticos numa região explosiva. Vale para Mubarak o que John Foster Dulles  dizia do ditador Anastácio Somoza, da Nicarágua: “É um filho da p., mas é  nosso filho da p.”

De olho no petróleo, os governos  ocidentais sempre respaldaram os governos tirânicos do mundo árabe. Negócios,  negócios, princípios à parte. Qual potência europeia rompeu com uma das tantas  ditaduras militares que assolaram a América Latina nas décadas de 1960 e  1970?

O Ocidente nunca se incomodou com a ausência de eleições  periódicas nos países árabes, a opressão  da mulher, a perseguição aos  homossexuais, o luxo nababesco dos governantes frente à miséria da grande  maioria da população. Quantos ditadores africanos engordam os cofres dos  bancos europeus?

Agora os EUA estão como o rei da história de  Hans Christian Andersen: nu, despido de sua arrogância supostamente  democrática, de sua prepotência imperial. E o pior, colocado entre a cruz e a  caldeirinha: se Mubarak permanece, a Casa Branca sustenta uma ditadura e  despreza o clamor do povo egípcio. Se é derrubado, há o risco de o Egito se  transformar, como o Irã, numa nação islâmica, hostil a Israel e aos propósitos  ocidentais.

Narra a Bíblia que o profeta Daniel (2, 31-36) foi  convocado para interpretar um sonho que tanto inquietava o rei Nabucodonosor,  da Babilônia: “Era uma grande estátua, alta e muito brilhante. Ela estava bem  à frente de Vossa Majestade e tinha aparência impressionante. A cabeça era de  ouro maciço; o peito e os braços eram de prata; a barriga e as coxas, de  bronze; as canelas de ferro e os pés, parte de ferro e parte de barro. Vossa  Majestade contemplava a estátua quando, sem ninguém jogar, caiu uma pedra que  bateu exatamente nos pés de barro e ferro da estátua, quebrando-os. Em  segundos, tudo desmoronou. Ferro, barro, bronze, prata e ouro ficaram como  palha no terreiro em final de colheita, palha que o vento carrega sem deixar  sinal. Depois, a pedra que tinha atingido a estátua se transformou numa enorme  montanha que cobriu o mundo inteiro.”

A pedra, no caso do mundo  árabe, é a ânsia popular de democracia entendida como justiça social e paz. O  que pensa um iraquiano vendo seu país há anos dominado por tropas ocidentais  que tratam os habitantes como escória da humanidade? O que pensa um afegão  vendo aviões ocidentais bombardearem aldeias, matando crianças, mulheres,  idosos, sob a desculpa de se tratar de um refúgio talibã? 

A  pedra é a cultura religiosa, muçulmana, que grassa naqueles países, e que nada  tem a ver com o suposto cristianismo do Ocidente. Em nome de Deus e de Jesus,   o Ocidente subjugou, durante séculos, a África, a Ásia e a América Latina.  Escravizou habitantes, extorquiu riquezas, transferiu para a Europa  preciosidades arqueológicas, como a Pedra de Roseta – hoje no Museu  Britânico -, fragmento de uma estela  de granodiorito do Egito antigo,  cujo texto foi crucial para a compreensão moderna dos hieróglifos egípcios.  Sua inscrição registra um decreto promulgado em 196 a.C., na cidade de Mênfis,  em nome do rei Ptolomeu V.

O pensamento islâmico não distingue a  fronteira entre religião e política. Esta deve ser monitorada por aquela. E a  autoridade religiosa é encarada, como ocorria no Ocidente medieval, detentora  do poder político.

Para tal conjuntura, o Ocidente só conhece uma  resposta: armas, guerras, ocupações, subornos e ditaduras. Porque é incapaz de  empreender o diálogo interreligioso, de reconhecer o direito daqueles povos à  autodeterminação, de pautar-se por princípios e não pela voracidade obsessiva  do mercado por lucro.

Se o fundamentalismo islâmico incute em  jovens a mística do martírio, introduzindo uma forma de terrorismo  incontrolável, o fundamentalismo do mercado incute nos ocidentais a convicção  de que igrejas e mesquitas devem ceder lugar aos shopping centers, templos de  consumismo e miniaturização do paraíso na Terra. 

Eis a pergunta  que, esta semana, se repete em Dakar, no Fórum Social Mundial, e exige  resposta urgente: Um outro mundo é possível?


Frei Betto é  escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros  livros.

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