“Permaneçam unidos a mim”, é uma das célebres frases que o autor desconhecido do 4º Evangelho pôs na boca de Jesus (Jo 15,4). Assim, a princípio não estranhamos o fato de que, ao longo dos últimos anos, muitos bispos católicos – preferencialmente de mãos postas, olhar compenetrado e voz embargada – venham insistindo, em suas homilias e diretrizes pastorais, na necessidade imperiosa de que se proporcione aos fiéis em culto, catequese e pastoral uma “experiência pessoal com Jesus” que pudesse se tornar o fundamento para uma relação inabalável entre o “mestre” e o “discípulo” (e, sobretudo, entre o crente e a Igreja que lhe proporcionou tal experiência). Não se precisa possuir nenhum dom analítico especial para adivinhar a verdadeira razão desta necessidade descoberta, digamos: um tanto tardiamente, na Igreja Católica: É a preocupação dos pastores com a perda de fiéis para as denominações “rivais” evangélicas onde o convertido, supostamente, “encontra” o Senhor Jesus. Os bispos devem ter-se dado conta – isso dói, viu! – de que o bordão gasto da mera pertença institucional à Igreja como garantia de salvação já não funciona mais para muitos leigos. Para eles, é inútil afirmar que “a plenitude dos meios salvíficos objetivos se encontra somente na Igreja Católica” (a graça eficaz dos 7 sacramentos, por exemplo); espera-se hoje de um ambiente religioso, antes de tudo, que proporcione uma experiência subjetiva com o próprio Cristo que toca profundamente a sentimentalidade da pessoa humana. Daí, então, a tardia valorização da eclesiologia joanina (“Eu sou a videira, vocês são os ramos”) pelo episcopado católico, acompanhado pelo plágio desavergonhado de práticas litúrgico-homiléticas sentimentalistas e euforizantes criadas por outras igrejas.
O lema “Queremos ver Jesus!” (Jo 12,21), de uma campanha evangelizadora lançada não muito tempo atrás pela CNBB, dá uma indicação do que se procura acentuar. No entanto, devemos perguntar pela qualidade cristã deste “encontro com Cristo”, festejado nas diversas igrejas, quando falta – tanto aos promotores quanto à clientela do espetáculo – uma informação teológico-exegética segura sobre quem foi, realmente, Jesus de Nazaré e qual o sentido mais profundo das afirmações cristológicas a respeito dele que se consagraram na Tradição Eclesial mais antiga. Corre-se o risco, em uma estratégia evangelizadora puramente orientada para resultados numéricos, de se oferecer um “Jesus” a gosto da multidão e de cada um(a), uma imaginação infiel àquilo que a pesquisa histórica sabe acerca de Jesus, hoje, caricatura esta que corresponde diretamente aos desejos (infantis e narcisistas) de indivíduos assustados e desorientados diante da “Babilônia” contemporânea. A necessidade psíquica, premente em pessoas imaturas, de esquecer ou negar as realidades ameaçadoras da existência (morte, doenças, violência, vício, miséria, acidentes) conduz, freqüentemente, a um “Nosso Senhor” onipotente, interventor milagroso e protetor supremo diante de todo mal, sem o qual o crente se sente um “nada”.* Motivação principal para esta procura ”religiosa” não é, em absoluto, a vontade consciente de seguir o exemplo de Jesus e transformar para melhor a realidade sofrida deste mundo; é antes um desejo inconfesso de querer ser poupado do grande mal onipresente, através de ofertas e sacrifícios devocionais ao “Todo-Poderoso”.
A alimentação deliberada, por parte de sacerdotes e bispos, de uma devoção religiosa oriunda de uma expectativa psíquica infantil torna-se sobremaneira preocupante em uma sociedade como a nossa, marcada por gritantes desigualdades sociais, altíssimos índices de violência e de mortandade infanto-juvenil e espantosa indiferença da consciência ética de muitos cidadãos. As Conferências Episcopais Latino-Americanas vem insistindo, desde Medellin (1968) que a ação evangelizadora em nosso continente precisa partir da realidade concreta de nossos povos. Aqui se abre uma dicotomia entre o que se lê nos documentos da CNBB e do CELAM e o que se vê nos templos e nos salões paroquais. Devemos ter clareza dos vários níveis em que se deve envolver a nossa “busca por Jesus”: (1) Quem foi Jesus de Nazaré, historicamente? – Quem informa aqui com competência é a comunidade internacional de pesquisadores e exegetas, e deve-se ter a humildade de escutar e aceitar os resultados convergentes e confirmados desta pesquisa. (2) Que Jesus precisamos mostrar aos povos latino-americanos, se quisermos ajudá-los em sua caminhada rumo a uma vida em plenitude? – Aqui se juntam, na índole salvífico-libertadora da Igreja, duas fidelidades: aquela que escuta honestamente os resultados da pesquisa bíblica com aquela que escuta os clamores e os anseios daqueles que mais sofrem e menos são (lembram dos “últimos que serão os primeiros”?). (3) Que Jesus queremos ver? – Aqui precisamos de uma introspecção mais honesta, de uma auto-análise mais aguda que nos revele o quanto de conteúdo psíquico mal reconhecido e mal resolvido está por trás de nossas “imagens” de Cristo, no sentido não de prescindir totalmente delas (não se pode viver sem imaginação), mas de não tomá-las simples e acriticamente como “a” verdade, só porque um poderoso desejo infantil as alimenta.
O Movimento em prol de uma Formação Teológico-Catequética de Qualidade para o Laicato Cristão, recém-criado em Fortaleza (moviformcrisfor@gmail.com), pretende problematizar bandeiras aparentemente insuspeitas e piedosas como “Queremos Deus!” (Que Deus?) e “Queremos ver Jesus!” (Que Jesus?), questionando o conteúdo ideológico oculto no fundo de muitas apresentações reducionistas de Jesus. Existe determinado tipo de “formação” catequética, muito procurada hoje nas igrejas, que esconde, deliberadamente, os aspectos conflitivos e dramáticos da existência terrena de Jesus (p.ex. suas tentações, a incompreensão da família, suas contestações do poder religioso e político da época que lhe valeu ser perseguido), seu papel profético-libertador e o caráter martirial de sua morte, em benefício de um Jesus puramente milagreiro, consciente de sua própria divindade e focado unicamente em sua missão de morrer para remir os pecados da humanidade. Tal (de)formação que não guarda a verdade integral sobre o Cristo precisa ser denunciada em público. Não basta ler a Bíblia, nas paróquias (por mais divina que a Lectio seja...): É preciso compreender o que se está lendo. Caso contrário, cada um(a) projeta o que quer para dentro do texto sagrado. Uma instrução teológica séria e comprometida se faz necessária, não um fazer-de-contas que se reduz a mini-cursos e alguns retiros! Façamos nosso o clamor do etíope em At 8,31: “Como posso entender, se ninguém me explica?!” O cristão leigo, tantas vezes proclamado pelo clero “protagonista” da nova evangelização, carece, no entanto, de base teológica segura para interpretar os dados da fé e aplicá-los criativamente à realidade secular complexa que encontra à sua frente. Assessorá-lo nisso é, pois, a nossa nobre missão.
*A frase joanina “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5), quando não interpretada dentro do contexto da teologia peculiar do 4º Evangelho, pode levar a um pessimismo antropológico que produz a sensação de impotência no ser humano – e o faz entregar toda responsabilidade por seus problemas a Jesus.
Carlo Tursi, teólogo e integrante do Movimento em prol de uma Formação Cristã de Qualidade (tursicarlo@gmail.com)
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