Eduardo Hoornaert
Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo
[Amigas, amigos,
Já passamos um mês sem o 'padre-mestre' José Comblin. Mas temos seus escritos e sua herança espiritual. Como ele manifestou o desejo de ser enterrado ao lado do padre Ibiapina (e efetivamente se executou seu desejo), pensei que fosse de alguma utilidade rememorar aqui alguns dados da vida do padre-mestre do século XIX, modelo de José Comblin. Os pontos de sintonia são impressionantes. Publiquei em meu blog em cinco breves textos: (leiam abaixo)
- Ibiapina 01: o advogado. A vida de Ibiapina antes de 1850. Posicionamentos, problemas, conflitos.
- Ibiapina 02: a virada. Os anos 1850-53. Uma nova decisão. Uma nova espiritualidade.
- Ibiapina 03: o missionário. Um novo tipo de missão. A educação popular.
- Ibiapina 04: intuições de Ibiapina (três viradas na vida)
- Ibiapina 05: literatura (os 3 estudos mais importantes).
Espero que esses textos sirvam para aprofundar a herança que José nos deixou.
Um abraço,
Eduardo].
Ibiapina 01: O advogado
Por Eduardo Hoonaert
Os aproximadamente 60 anos de vida pública de Ibiapina (ele viveu entre 1806 e 1883), podem ser divididos em dois períodos de 30 anos mais ou menos. Num primeiro período, ele é sucessivamente deputado, juiz de direito e advogado. Depois atua como missionário pelos sertões nordestinos. Entre ambos os períodos se insere um tempo de crise (entre 1850 e 1853), em que ele decide dar um novo rumo à sua vida. Daí os temas de três breves textos que ora entrego à sua leitura: (1) Ibiapina advogado, (2) a decisão, (3) Ibiapina missionário.
Nascido de uma família de situação financeira relativamente folgada, o jovem José Antônio teve oportunidade de estudar latim com professores particulares, tanto em Jardim (Cariri) como em Icó (lugares onde a família residiu). Quando, aos dezessete anos (em 1823), ele viajou a Olinda para estudar no famoso seminário, já estava intelectualmente bem preparado. Naquele tempo, o bispado de Olinda abrangia grande parte do interior nordestino, do Ceará ao norte até os sertões limítrofes de Minas Gerais no sul. Criado em 1801 por Dom Azeredo Coutinho nas dependências do antigo colégio dos jesuítas, no topo de uma colina que domina a cidade de Recife, o seminário era famoso na época por ser o centro de uma efervescência política que se estendia bem além dos limites da igreja. Estava em curso a ‘revolução dos padres’. Em 1817, três sacerdotes do bispado de Olinda (Miguelinho, João Ribeiro e Roma) tinham sido fuzilados em Salvador por suas idéias em prol da independência do Brasil. Os seminaristas os consideravam mártires da libertação do Brasil e discutiam intensamente as novas idéias políticas provenientes da França, considerada ‘terra da revolução’. Liberdade, fraternidade, igualdade. Na cabeça desses estudantes, o seminário tinha a missão de formar um Brasil moderno, republicano, aberto, liberal, livre, fraterno, à imagem e semelhança da França. Mas, estranhamente, o jovem Ibiapina abandonou o seminário de Olinda e pediu acolhimento no convento da Madre de Deus, mantido por padres oratorianos no coração do Recife velho, perto do local onde hoje existe um shopping (Ilha do Recife). A Crônica das Casas de Caridade relata a razão dessa brusca mudança: ‘Não encontrando naquele templo da virtude e das ciências (o seminário de Olinda) a moralidade e religiosidade que esperava, demorou-se pouco e passou-se para o convento da Madre de Deus’ (edição 2006, 64). Ora, Ibiapina vivia rodeado de parentes apaixonados pelos ideais da revolução francesa. Seu pai morreu na luta da Confederação do Equador e seu irmão, também revolucionário, foi exilado para a Ilha Fernão de Noronha, onde faleceu ‘em luta com as ondas’ (Crônica, edição 2006, 65). No dia 13 de janeiro de 1825, Frei Caneca foi fuzilado no Forte de Recife, bem perto do convento da Madre de Deus, onde Ibiapina vive. Mais adiante (veja: a originalidade de Ibiapina) comento essa decisão por parte do jovem, então com 18 anos.
Em 1825, diante da penúria em que se encontrou sua família depois da morte do pai, ele foi obrigado a interromper os estudos e voltou ao Ceará para cuidar da mãe e de irmãos menores. Mesmo assim, Ibiapina, poucos anos depois, conseguiu retornar a Olinda, desta vez não para estudar filosofia, mas para estudar direito, pois tinha de sustentar a família que vivia na pobreza. Naquele tempo, algumas dependências do antigo colégio jesuítico foram cedidas para abrigar a primeira faculdade de direito do Brasil (a de São Paulo é da mesma época). Em 1834, ele obteve a ‘carta’ de Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas e se tornou logo depois lente na mesma faculdade onde estudara. Em pouco tempo, ele foi eleito deputado cearense à Assembléia geral do Brasil (no Rio de Janeiro) e, no ano seguinte, juiz de direito e chefe da polícia em Quixeramobim, interior do Ceará. Foi uma ascensão vertiginosa para um jovem de vinte e oito anos. Mas aí começaram os conflitos. O então presidente da Província do Ceará, padre Martiniano de Alencar (pai do romancista José de Alencar), quis que ele atendesse à vontade de um coronel local de Quixeramobim e condenasse um rapaz acusado de roubar um cavalo de dito coronel. Ao invés de seguir a orientação de seu superior, Ibiapina instalou um processo judicial e absolveu o rapaz. Com isso, o presidente da província passou a hostilizá-lo e Ibiapina teve de abandonar sua terra natal. Ele passou a exercer a profissão de advogado e fixou moradia em Areia, uma vila próspera do brejo paraibano formada por uma burguesia de senhores de engenho de açúcar (produção de rapadura) e ‘casas de farinha’. Mas aí entrou de novo em conflito com a ‘boa sociedade’, desta vez por ter ‘beneficiado’ um assassino. Ao voltar da roça, um camponês tinha encontrado sua mulher com outro homem. Imediatamente disparou a espingarda, matando o ‘adúltero’. Ibiapina alegou forte pressão psicológica e fez com que não se condenasse o rapaz como assassino culposo. Ele teve de sair de novo e resolveu exercer a advocacia em Recife. Mas os problemas não cessaram. Por onde ele procurava fazer justiça, encontrava obstáculos insuperáveis. Quem decidia sobre vida e morte era o coronelismo, não a justiça. Já que ele, ao longo de uma já larga carreira, só conseguira encontrar dificuldades e conflitos com autoridades e colegas, Ibiapina pensou em dar tempo ao tempo e se recolheu numa pequena propriedade em Caxangá, bairro de Recife. Passando de decepção em decepção, ele sente a necessidade premente de silêncio e reflexão.
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Ibiapina 02: A virada
Por Eduardo Hoornaert
Amargurado com as injustiças que encontra por todo canto, Ibiapina compra um pequeno sítio em Caxangá, perto de Recife. Hoje a Avenida Caxangá é uma das principais vias de Recife, dá acesso a Camaragibe e daí ao interior do estado. Durante três anos (1850-1853) ele fica aí numa reclusão só interrompida pela assistência à missa e por rápidas saídas para fazer compras. Ele lê a ‘Imitação de Cristo’ de Tomás a Kempis, um texto do século XIV que deve ter chegado a seu conhecimento nos anos de permanência no convento da Madre de Deus, em contacto com os padres oratorianos do Convento. A espiritualidade dos padres oratorianos contrastava com a das tradicionais ordens religiosas do Brasil colonial, principalmente os carmelitas, franciscanos e beneditinos. Era uma espiritualidade herdeira da chamada ‘devoção moderna’, ou ‘vida comum’, um movimento leigo atuante no sul da atual Holanda (donde provém Tomás a Kempis) nos últimos séculos da idade média (séculos XIV e XV). A idéia básica é que o ‘mundo’ também é lugar de santificação, não só os conventos. Nem todos(as) têm condições de viver em convento ou freqüentar a igreja. A grande maioria vive a vida toda no trabalho, na cozinha e na oficina, no comércio e na lavoura. Na casa e no casamento, afinal. Eis o lugar ‘comum’ da santificação das pessoas comuns, escreve Tomás a Kempis. Eis uma idéia simples e fundamental, defendida desde muitos séculos pelos melhores mestres espirituais. Já no século VII, por exemplo, um famoso mestre espiritual escreveu: Se todos compreendessem, ninguém deixaria o mundo.
Esse verso consta da ‘Escada da Ascensão divina’, da autoria de João Clímaco (579-649) e ele parece talhado para definir o clima espiritual em que Ibiapina passa seus três anos de reclusão. Ao longo de suas meditações e reflexões sobre sua vida passada, ele se emociona: como o mundo anda mal! A Crônica tem um texto sobre esse estado de espírito: ‘ele (Ibiapina) tinha entrado no amargo de nossa sociedade, tinha visto em todas as suas faces, em toda a sua hediondez, a miséria em que se debatem as classes menos favorecidas da fortuna, ele tinha visto milhares de infelizes órfãos, arrastando os andrajos da miséria, a tiritar de fome e frio’ (edição 2006, 75). Ibiapina chora ele conquista o ‘dom das lágrimas’ (como dizem os mestres espirituais). Emerge aos poucos a figura do missionário.
‘É mais útil ser missionário que advogado’, pensa Ibiapina. Observe-se que ele utiliza muito o termo ‘útil’, uma palavra-chave da ‘devoção moderna’. A vida tem de ser ‘útil’, a espiritualidade também. Eis uma espiritualidade que permeia a Crônica das Casas de Caridade e que contrasta com aquela que caracteriza a maioria dos missionários que na época andam pelos sertões nordestinos, principalmente os capuchinhos. Esses costumam recorrer à ‘pastoral do medo’, falam em condenação eterna no inferno, pecado, fim do mundo, demônios e tentações. Ibiapina não. Não existem ameaças apocalípticas nas falas de Ibiapina. Ele trata do trabalho e da vida comum de pessoas comuns. Padre Cícero, por exemplo, se mostra nesse ponto mais ‘capuchinho’ que o ‘oratoriano’ Ibiapina. Dona Maria da Conceição Lopes Campina, uma órfã amparada pelo padre Cícero, que reuniu muito ditos dele, lembra como o referido padre ameaçava o povo com as penas do inferno (Voz do Padre Cícero, Edições Paulinas, São Paulo, 1984, 178). Ele dizia que a cidade de Juazeiro era uma arca de Noé no meio do dilúvio de pecados que inunda o mundo, o último refúgio de Deus no mundo perverso que aguarda os horrores medonhos que acompanham a revelação apocalíptica. A visão sombria de padre Cícero está na linha de toda uma história da tradicional pastoral sertaneja católica. Essa não é a metodologia de Ibiapina e por isso se pode dizer que ele inova e até hoje tem coisa nova a nos dizer.
Enquanto o advogado em crise está meditando sobre tudo isso, o bispo de Olinda, informado acerca de um leigo culto e piedoso, que não perde uma missa na igreja de São José e é de um comportamento exemplar, o convida para se tornar padre. Pois faltam padres cultos e piedosos. O procedimento pode ser simples, pois o eventual candidato já domina o latim e está por dentro do direito. Ibiapina aceita e, após um breve tempo de preparação, é ordenado sacerdote na Sé de Olinda (1854).
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Ibiapina 03: missionário
Por Eduardo Hoornaert
A primeira nomeação de Ibiapina é a de professor de eloqüência sacra no seminário de Olinda, mas ele é rapidamente promovido a vigário geral do bispado. Será que seu destino é o trono episcopal? Tudo indica que o bispo que o ordenou pensa assim. Mas aí aparece o vibrião colérico. Quando um colega, vigário no interior de Pernambuco, o informa que no distrito de Gravatá (trata-se de Gravatá de Ibiapina, não confundir com a cidade de Gravatá, no interior de Pernambuco) apareceu um surto de cólera e que muita gente está morrendo por absoluta falta de infra-estrutura para combater a terrível epidemia, Ibiapina não hesita. Ele não tinha chegado à conclusão, durante seu refúgio de Caxangá, que não se ordenaria para seguir uma carreira eclesiástica, mas por seguir uma vida ‘útil’? Em 1860, seis anos após sua ordenação sacerdotal, ele penetra no interior e nunca mais retorna. Em Gravatá, ele ‘abre missão’ segundo a tradição. Mas é uma missão diferente, uma missão ‘útil’. Ibiapina alia o trabalho espiritual (orações, sacramentos, sermões, penitências, procissões) ao trabalho material: ele comanda a construção de um hospital provisório e de um cemitério. Escreve a Crônica: ‘(Ibiapina) tratou de associar obras espirituais (morais) e materiais, como (construção de) igrejas, cemitérios e açudes’ (edição 2006, 73). O termo ‘cemitério’, recorrente na Crônica, significa quase sempre um cemitério para coléricos falecidos, construído com pressa por um mutirão (trabalho comunitário) integrado no organograma da missão ‘moral e espiritual’. A missão ibiapina é uma grande inovação em termos de trabalho social e educacional. Ao mesmo tempo em que declara guerra ao pecado, Ibiapina declara guerra à doença, ao abandono, à falta de coesão social. Em Gravatá, tudo tem de andar depressa. Primeiramente, enterrar dignamente os falecidos. Depois separar, por meio de um hospital, os contaminados dos saudáveis. Finalmente tentar erradicar o foco da cólera. Ibiapina insiste: ‘é preciso beber água pura, a água de lagoas e rios não merece confiança’. Ele fala de forma pragmática, não recorre a grandes palavras nem solenes proclamações de princípios. O missionário não discute, ele age. Em muitos lugares não há nem hospital nem cemitério. Seu adversário não é o protestante nem o espírita, é a cólera que devora a vida do povo, é a falta de higiene e educação. Ibiapina se erige no meio do povo como um ‘irmão da vida comum’, fica acima da clausura entre sacerdote e leigo, religião e ação social. Quem quiser colaborar com ele, seja católico ou protestante, é bem-vindo.
Durante vinte anos, as viagens missionárias de Ibiapina seguem o programa traçado em Gravatá (1860). Ele não tem plano pré-estabelecido, mas obedece aos apelos da necessidade. Fiel aos ditames do ‘dom das lágrimas’, ele age impelido pela emoção. Quando toma conhecimento da triste sorte das moças do interior, condenadas a uma vida de muito trabalho e pouco respeito, ele se mete a fundar vinte e duas Casas de Caridade espalhadas pelo interior nordestino, de Bezerros (PE) no sul (1866) a Acaraú (CE) no norte (1860), de Pilões (PB) no leste (1860) a Crato (CE) no oeste (1869). Um trabalho gigantesco, cuja dimensão geográfica está traçada no pequeno mapa que acompanha a edição 2006 da Crônica. Fica difícil avaliar as dimensões organizatórias e financeiras de uma obra desse vulto. Quando ouve dizer que, na localidade onde pretende missionar, existem rixas e violências entre famílias rivais de fazendeiros, ele manda cavar um fosso na praça pública. Aí têm de ser enterradas todas as armas existentes na vila. Senão, o missionário não ‘abre missão’. Quando chega num lugarejo onde as pessoas não se falam entre si, ele manda que todos se abracem antes de abrir missão. Quando não existe água boa, ele manda cavar uma cacimba em ritmo de mutirão, um trabalho que ocupa as pessoas durante o tempo todo de sua permanência. Manda fazer diques para formar açudes, construir pontes, estradas e canais de irrigação. Mas o trabalho mais complicado consiste em erigir igrejas. Diversas igrejas ibiapinas ainda funcionam hoje como igrejas paroquiais, elas costumam ser amplas e bem construídas (como a igreja de Bananeiras no brejo paraibano). O balanço final das realizações materiais do missionário é impressionante: vinte e duas Casas de Caridade, dez igrejas, dez açudes, nove cemitérios, quatro hospitais, uma casa paroquial, uma cacimba pública, até um gabinete de leitura em Crato (Crônica, 2006, 242).
Em seu livro ‘A missão ibiapina’, Ernando Teixeira descreve a missão de Bananeiras (PB) em 1863 (pp. 45-50), a mais detalhadamente descrita na Crônica. Chegando à cidade, o missionário percebe que as pessoas vão à missão como se fossem a uma festa, e manifesta logo sua insatisfação: ‘sendo assim eu me retiro e deixo de pregar aqui’ (p. 45). A missão não é uma festa. O missionário sabe que a matriz está desmoronada e ele pensa num mutirão para reconstruí-la. No sermão de abertura da missão, ele explica que o trabalho será muito pesado e que ele conta com a colaboração de todos e todas. O resultado é impressionante: no dia seguinte oito mil pessoas se aglomeram na praça e começam a cavar o chão repleto de ossos em torno da antiga matriz (antigamente o entorno das igrejas servia de cemitério). As moças mais ‘delicadas’ do lugar trabalham ao lado das mais humildes. O sucesso é total e, no final da missão, ‘duas virgens da principal família despiram as galas, os enfeites e as esperanças ilusórias do mundo e se recolheram na Santa Casa de Santa Fé (atual Arara, a uns 15 km. de Bananeiras), situada num terreno cedido pela família Cunha Lima (pp. 47-48). Essa mesma família cuidará do sustento dessa casa nos últimos anos da vida do missionário (1880-1883), o que constitui um encargo enorme, pois na época a casa reúne nada menos que 200 pessoas. Eis um exemplo concreto de como Ibiapina une o espiritual (orações, sacramentos, sermões, penitências, procissões) ao material (construção de hospitais, cemitérios, açudes, capelas, estradas, pontes, canais de irrigação, sem esquecer as casas de caridade). Aproveitando a capacidade aglutinadora das santas missões, ele organiza mutirões, (um tipo de trabalho comunitário herdado dos índios). A missão, ao mesmo tempo, declara guerra ao pecado e à doença, ao abandono, à miséria. Ibiapina não é homem de grandes palavras ou solenes proclamações, mas de ações concretas. Ele tem autoridade e consegue dinamizar a capacidade humana em colaborar, trabalhar de graça, unir esforços, ser honesto, respeitar a lei e a justiça, respeitar os outros, sensibilizar-se com doentes, inválidos e pobres em geral.
Assim, Ibiapina vai percorrendo os sertões nordestinos, num traçado zigue-zague, obedecendo a convites feitos por vigários ou fazendeiros. Desse modo ele acaba percorrendo praticamente todo o interior do Nordeste. Não só atua no Cariri (Ceará) e na região da Borborema (Paraíba), os dois principais pólos de sua atuação, mas também nos sertões e brejos paraibanos e pernambucanos, diversos lugares do Rio Grande do Norte (Açu, Mossoró e Macau), do norte do Ceará (Fortaleza, Sobral, Acaraú), assim como do Piauí (Picos, Patos). Ele se torna referência para figuras religiosas marcantes, como padre Cícero de Juazeiro e beato Antônio Conselheiro de Quixeramobim (falecido em Canudos na Bahia). Eis o líder nordestino que inspirou José Comblin nos últimos 35 anos de sua vida.
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Ibiapina 04: Intuições Ibiapinas
Por Eduardo Hoornaert.
Na biografia de Ibiapina existem, no meu entender, pelo menos três momentos em que ele manifesta uma intuição incomum. A primeira acontece quando ele tem apenas 18 anos (em 1823). Como já escrevi acima, o jovem estudante abandona o seminário de Olinda e vai morar com os padres oratorianos em Recife. No seminário de Olinda fervem as novas idéias da revolução francesa (final do século XVIII). O livro do professor Siqueira ‘Os padres e a teologia da ilustração: Pernambuco 1817’ (Editora Universitária UFPE, Recife, 2009) expõe amplamente o tema. Ibiapina não se entusiasma com a teologia da ilustração de Olinda, nem com as grandes idéias libertárias que afetam a burguesia de sua época, o que não deixa de ser estranho para quem vem de um ambiente familiar marcado pelas idéias francesas. Seu pai e irmão lutam e morrem por idéias libertárias. Ibiapina, pelo contrário, se posiciona de forma independente, não adere aos grandes ideais burgueses. Parece que não lhe interessam esses grandes programas e que ele prefere se formar fora dessas ‘brigas de gente grande’. Podemos ver nisso, desde já, os esboços da futura opção pela gente miúda da sociedade? Mais tarde, Joaquim Nabuco dará implicitamente razão a Ibiapina ao escrever: ‘As revoluções brasileiras são ondulações do que se passa em Paris’. Elas não combinam com a realidade do país.
O segundo momento é o da crise dos anos 1850-53, que já descrevi nas considerações aqui apresentadas. Com 43 anos de vida, Ibiapina resolve parar, o que não é comum para uma pessoa que está na idade em que o corpo está no auge de suas potencialidades. Na idade em que a maioria das pessoas navega a todo vapor numa carreira já em pleno curso, ele resolve parar, dedicar tempo para ver o que significa a crise que está sentindo dentro de si e quais são as eventuais perspectivas. Ele sente que se esgotou a carreira de advogado. É preciso pensar em algo que seja mais ‘útil’ para a sociedade. É preciso penetrar mais no universo dos pequenos, das pessoas comuns. Em 1854, ele abraça o sacerdócio.
Penso que Ibiapina vislumbra uma terceira encruzilhada por ocasião da bem-sucedida missão de Bananeiras (1863), já descrita aqui. O sucesso da missão lhe indica a possibilidade de ir além do trabalho esporádico de viagens a convite de vigários ou fazendeiros e de iniciar algo mais fundamental no plano educacional. Pois as Casas de Caridade, na mente do missionário, são antes de tudo casas de educação e formação da juventude. Nelas se experimentam métodos totalmente novos para a sociedade do século XIX, não só no plano propriamente educacional como também nos planos do trabalho (que deixa de ser escravo), da posição da mulher (que deixa de ser secundaria) e da prática religiosa (que deixa de ser puramente ritual). Num tempo em que praticamente todas as instituições brasileiras funcionam na base de trabalho escravo, as Casas de Caridade não recorrem a escravos para execução dos trabalhos manuais. O primeiro biógrafo do padre-mestre, o autor paraibano Celso Mariz (1942), é taxativo: ‘A instituição não recebia de presente, não comprava e não possuía escravos’ (‘O padre Ibiapina, um apóstolo do Nordeste’, Gráfica A União, João Pessoa, 1942, 257). Eis um ponto fundamental, visto o caráter escravagista da sociedade brasileira. Podemos dizer que as Casas de Caridade do padre Ibiapina seguem, já no século XIX, um modelo ainda não alcançado nos dias de hoje nas famílias brasileiras de classe média. Um segundo ponto em que Ibiapina está bem à frente de seu tempo consiste na atenção dada à mulher, seus problemas e suas potencialidades. Cabe registrar aqui que no interior do Nordeste, até 1851, só existe uma escola (em Pernambuco) voltada para o atendimento de meninas pobres. Mesmo assim, essa escola não cuida do ensino profissional, em contraste com as Casas de Caridade, que ensinam leitura, escrita, ofícios domésticos, industriais e agrícolas e chegam mesmo a formar ‘mestras públicas’. Eis um assunto ainda não suficientemente pesquisado dentro de uma perspectiva feminista. Ibiapina demonstra ‘vontade política’ de investir em educação feminina e nisso continua pioneiro, mesmo nos dias de hoje. No tocante à religiosidade se registra igualmente novidade nas Casas de Caridade, pois nelas não se reprime o caráter lúdico e criativo do catolicismo popular. Não se interpretam as imagens de Jesus crucificado, Nossa Senhora das Dores e outros santos penitentes como símbolos de uma árdua batalha contra os antigos deuses do sertão, lúdicos e amantes da vida e de seus prazeres. Pelo contrário, abandona-se o penitencialismo de caráter negativo. O teor dominante da religiosidade praticada nas Casas de Caridade é construtivo. Ressoam cantos e músicas que são sempre de teor religioso, mas mesmo assim lúdicos e alegres. Um só exemplo tirado dos registros da Casa de Santa Fé. Nos últimos anos de sua vida, o missionário, já cansado das viagens, costuma passear com as meninas da Casa da Caridade nos domingos, depois da missa. Ele é levado em rede e, como escreve a Crônica, ‘as órfãs vão colhendo flores e cantando estes versos feitos por ele:
Meu Pai Padre Mestre
Vamos passear
O domingo é nosso
Vamos desforrar.
As campinas têm flores
Boas de apanhar
Atrás das borboletas
Que belo folgar (Crônica ed. 2006, 170 e 198).
Outro texto encantador é a narrativa da festa da Imaculada, no dia 8 de dezembro de 1879 (Crônica 2006, 202-212). Nela se evoca a natureza, um Deus que gosta de música e dança, a alegria do padre-mestre dentro de um ambiente de alegria, respeito e acolhimento.
Uma das novidades pouco conhecidas de Ibiapina consiste na fato que ele lida com beatos que em nada correspondem à imagem do beato rezador e simplório, fora da realidade da vida. Os ‘homens de Ibiapina’ são muito ativos, eles executam um amplo leque de atividades que vão desde o árduo trabalho de ‘tanger os burros’ a transportar cargas (bacalhau, legumes, água, farinha de mandioca, algodão, tecidos) ou pessoas (irmãs, órfãs) por longas distâncias, até a complexa administração das Casas de Caridade. O beato cuida dos roçados em torno da casa (deles provém grande parte do sustento), ele comercializa o que a casa produz em termo de renda, labirinto, crochê, chapéu de palha e tecidos finos e, em determinados casos, ainda fica responsável pelas finanças da casa.. Há beatos que viajam na qualidade de esmoleres, empreendem longas viagens em busca de dinheiro a sustentar as casas. Há beatos ‘esmolando’ (o verbo é típico da linguagem utilizada na Crônica) nas fazendas ao longo do rio São Francisco e mesmo em Rio de Janeiro, capital do país. O beato ibiapino é um voluntário sem estatuto fixo nem regulamentação trabalhista. Tudo se baseia no voluntariado. Não se compreende facilmente como esses beatos, que são numerosos, conseguem executar tarefas de tanta abrangência e complexidade. Há, por exemplo, senhores fazendeiros que passam a ser chamados beatos pelo povo no momento em que decidem colaborar com Ibiapina. Ele mesmo prefere chamá-los ‘gedeões’, aludindo ao primeiro juiz da história de Israel (Jz 5, 1-8, 35). Um famoso Gedeão é o fazendeiro Cunha Lima que doa as terras de Santa Fé ao missionário. A beata Júlia, frequentemente mencionada na Crônica, é também uma mulher da alta sociedade, esposa de um fazendeiro. O povo a chama de beata porque ela governa uma Casa da Caridade. Há beatos e beatas que dominam bem a língua portuguesa, escrevem com letra caprichada e redigem textos (como o da própria Crônica, principal fonte histórica acerca de Ibiapina). Quem quiser saber mais sobre esses beatos leia o artigo de Ernando Teixeira na Revista Eclesiástica Brasileira de outubro 2010: ‘Ibiapina e seus beatos’ (pp. 886-909). Aí se encontram muitos exemplos interessantes, provenientes de uma consulta direta da documentação histórica.
Em 1878, no final do mês de dezembro, já doente, Ibiapina menciona os obstáculos enfrentados para manter funcionando algumas Casas de Caridade. Ele alude à seca de 1877, relata as agruras causadas por falta de água e lamenta que a roupa tenha de ser lavada a três léguas de distância e a água para beber carregada por duas léguas. Ele menciona a precariedade dos recursos financeiros e a impossibilidade de se comprar cargas de água e alimentos. Ele deve ter pressentido as situações críticas que as Casas de Caridades teriam de enfrentar após sua morte.
Mas não é só por problemas econômicos que o pano desce sobre as obras de Ibiapina, logo depois de sua morte. É porque se inicia a romanização da igreja do Brasil, que consiste em implantar no país o modelo clerical europeu, nunca plenamente obedecido no Brasil colonial. As autoridades romanas descobrem irregularidades em toda parte. Para elas, o Brasil lusitano não conta, pois não vale nada. Elas resolvem ‘passar tudo a limpo’ e colocar a igreja ‘nos eixos’. O bispo tem de cuidar, antes de tudo, em fundar e organizar um seminário em moldes europeus (romanos ou franceses). Diante dessa nova lógica eclesiástica, as obras de Ibiapina sucumbem em pouco tempo, são desativadas ou destinadas a outros fins. As Casas de Caridade de Cajazeiras e Bezerros viram colégios, a de Sobral se torna Casa de Misericórdia (hospital), a de Cabaceiras Biblioteca Municipal. A grande Casa do Crato se transforma em Centro Social e hoje é sede da Universidade Regional do Cariri. Santa Fé na Paraíba vira casa paroquial e a Casa de Campina Grande é transformada em orfanato (funcionou desse modo até 1975). Um sinal significativo dessa romanização (ou europeização) pode ser visto por quem visita os dois grandes pátios internos do seminário da Prainha em Fortaleza. Aí se encontram as estátuas de santos franceses como o Cura d’Ars e São Vicente de Paulo, mas o visitante procura em vão uma referência às grandes figuras do Ceará católico: o padre Ibiapina, o padre Cícero e o beato Antônio Conselheiro. Mesmo assim, como escreve Ernando Teixeira no referido artigo da Revista Eclesiástica Brasileira, ‘o tempo de Ibiapina ainda não terminou’ (p. 196). Prova disso a ‘fase ibiapina’ da vida de José Comblin, uma história ainda não contada.
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Ibiapina 05: A Literatura
Por Eduardo Hoornaert
Existe uma literatura bastante consistente sobre José Antônio Pereira Ibiapina (1806-1883), mais conhecido como ‘padre Ibiapina’. O trabalho que divulgou pela primeira vez seu nome no mundo dos letrados foi a biografia publicada em 1942 pelo historiador paraibano Celso Mariz: ‘O padre Ibiapina, um apóstolo do Nordeste’ (Gráfica A União, João Pessoa), um estudo sólido que continua fundamental. Em 1996, quando a diocese de Guarabira (Paraíba) introduziu um processo de beatificação do padre junto ao Vaticano, o padre Francisco Sadoc de Araújo publicou o livro ‘Padre Ibiapina, peregrino da caridade’ (Edições Paulinas, São Paulo), que tem o mérito de integrar a ‘Crônica das Casas de Caridade fundadas pelo padre Ibiapina’, principal fonte histórica que possuímos sobre Ibiapina. Há duas edições dessa Crônica, ambas preparadas por mim: uma de 1981 (edições Loyola, São Paulo) e outra de 2006 (Secretaria de Cultura do Estado do Ceará). O autor cruza dados da Crônica com outros documentos históricos disponíveis, como os arquivos das Casas de Caridade de Santa Fé (Arara), Campina Grande e Pocinhos. Em 2008, Ernando Teixeira enriqueceu a essa literatura com seu trabalho ‘A missão ibiapina’ (Gráfica Editora Berthier, Passo Fundo, 2008), que oferece a melhor edição crítica e atualizada da literatura existente sobre a vida missionária (os últimos 30 anos). Além disso, o autor nos brinda com uma edição dos textos em grafia atualizada, excelente pontuação e divisão de frases e parágrafos, o que permite uma leitura fluente de documentos que antes só se liam com dificuldade. As numerosas notas de rodapé, minuciosamente redigidas, constituem em si mesmas um esboço biográfico de primeira classe, em diversos pontos mais preciso e detalhada que os trabalhos anteriores de Celso Mariz e Francisco Sadoc. Finalmente, Ernando Teixeira sustenta que toda a tradição literária originária em torno do missionário provém, em última análise, da Casa de Caridade de Santa Fé na Paraíba. Santa Fé é o nome de uma fazenda doada ao padre Ibiapina pela família Cunha Lima, no sítio Arara (município de Solânea, no brejo paraibano, a 50 km. aproximadamente de Campina Grande) depois da grande missão em Bananeiras no ano 1863. Ai o missionário fixou o centro de sua obra quando não tinha mais condições de andar a pé pelos sertões. Pois ele andava a pé e costumava dizer: ‘as ovelhas não têm de carregar (de rede) o pastor, é o pastor que tem de carregar as ovelhas’. Só na sua última viagem (de Triunfo em Pernambuco a Santa Fé) ele foi carregado de rede, pelo que me consta. Com o tempo, a tradição literária proveniente de Santa Fé se espalhou pelas Casas de Caridade, feitas principalmente na Paraíba e no Cariri cearense. Hoje, o corpo do padre Ibiapina está enterrado em Santa Fé e foi aí que o padre José Comblin desejou ser enterrado também, ao lado do ‘padre mestre’.
Gostaria de chamar aqui a atenção para uma dimensão pouco conhecida dessa literatura. Ela tem valor antropológico e historiográfico importante, pois relata a presença de remanescentes indígenas nos sertões, ainda nas últimas décadas do século XIX. Isso em contraste com os documentos oficiais que,
desde o início do século, afirmam que ‘não há mais índios nos sertões’. Em 1863, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, da Diretoria dos Índios do Ceará, declara: ‘Dos índios só restam o céu e a terra e a lembrança de suas espantosas desgraças’. Percorrendo os sertões, Ibiapina descobre um universo indígena desconhecido e desse modo nos remete a uma antiga e esquecida história, a da ‘guerra dos bárbaros’ de 1710-1720 (a expressão é do historiador Taunay). Essa guerra foi um verdadeiro cataclismo para o diversificado mundo indígena do Nordeste (só no Ceará havia 21 povos que não pertenciam à família linguística tupi). Essa história é mal conhecida: a documentação fundamental acerca do episódio nem foi publicada no Brasil, só existe em publicações portuguesas. A historiadora portuguesa Virgínia Rau editou em Lisboa dois volumes com os documentos da Casa de Cadaval, uma família portuguesa possuidora de terras no Piauí e no Ceará, que dispunha de um copista que assistia às discussões sobre questões brasileiras levadas ao conhecimento do rei na ‘Mesa de Consciência e Ordens’ de Lisboa e anotava o que interessava. Nessa documentação se encontram repetidas queixas de sacerdotes seculares contra os jesuítas de Ibiapaba (no norte do Ceará) que armavam ‘índios mansos’ contra ‘índios brabos’ e desse modo contribuíam para o desfecho trágico da ‘guerra dos bárbaros’ (também chamada de ‘confederação do Cariri’, ou ainda ‘levante de Mandu Ladino’). A referida documentação revela a dimensão do drama que se abateu sobre o Nordeste indígena nos primeiros dois decênios do século XVIII e explica o ‘silêncio indígena’ que doravante pairou sobre toda a região. Já que Ibiapina andou por muito tempo pelos sertões, ele teve oportunidade de encontrar remanescentes de populações indígenas, seja em pé de serra ou cabeceira de rio. Ele os encontrou na encosta da Chapada do Araripe, da Serra dos Cariris Novos, da Serra dos Cariris Velhos ou da Serra da Borborema, ou ainda nas cabeceiras do Rio Salgado (no Cariri cearense), dos rios Pajeú, Taperoá, Capibaribe, Paraíba e (principalmente) Curimataú. Eram grupos esparsos, medrosos e miseráveis. O missionário não era antropólogo, mas mesmo assim prestou um serviço ímpar à antropologia cultural do Nordeste e aos estudos brasileiros em geral ao revelar como os habitantes originais da terra sobrevivem por meio da mestiçagem, do sincretismo e do lento e penoso processo de integração numa sociedade que cultiva sentimentos negativos a seu respeito.
Já passamos um mês sem o 'padre-mestre' José Comblin. Mas temos seus escritos e sua herança espiritual. Como ele manifestou o desejo de ser enterrado ao lado do padre Ibiapina (e efetivamente se executou seu desejo), pensei que fosse de alguma utilidade rememorar aqui alguns dados da vida do padre-mestre do século XIX, modelo de José Comblin. Os pontos de sintonia são impressionantes. Publiquei em meu blog em cinco breves textos: (leiam abaixo)
- Ibiapina 01: o advogado. A vida de Ibiapina antes de 1850. Posicionamentos, problemas, conflitos.
- Ibiapina 02: a virada. Os anos 1850-53. Uma nova decisão. Uma nova espiritualidade.
- Ibiapina 03: o missionário. Um novo tipo de missão. A educação popular.
- Ibiapina 04: intuições de Ibiapina (três viradas na vida)
- Ibiapina 05: literatura (os 3 estudos mais importantes).
Espero que esses textos sirvam para aprofundar a herança que José nos deixou.
Um abraço,
Eduardo].
Ibiapina 01: O advogado
Por Eduardo Hoonaert
Os aproximadamente 60 anos de vida pública de Ibiapina (ele viveu entre 1806 e 1883), podem ser divididos em dois períodos de 30 anos mais ou menos. Num primeiro período, ele é sucessivamente deputado, juiz de direito e advogado. Depois atua como missionário pelos sertões nordestinos. Entre ambos os períodos se insere um tempo de crise (entre 1850 e 1853), em que ele decide dar um novo rumo à sua vida. Daí os temas de três breves textos que ora entrego à sua leitura: (1) Ibiapina advogado, (2) a decisão, (3) Ibiapina missionário.
Nascido de uma família de situação financeira relativamente folgada, o jovem José Antônio teve oportunidade de estudar latim com professores particulares, tanto em Jardim (Cariri) como em Icó (lugares onde a família residiu). Quando, aos dezessete anos (em 1823), ele viajou a Olinda para estudar no famoso seminário, já estava intelectualmente bem preparado. Naquele tempo, o bispado de Olinda abrangia grande parte do interior nordestino, do Ceará ao norte até os sertões limítrofes de Minas Gerais no sul. Criado em 1801 por Dom Azeredo Coutinho nas dependências do antigo colégio dos jesuítas, no topo de uma colina que domina a cidade de Recife, o seminário era famoso na época por ser o centro de uma efervescência política que se estendia bem além dos limites da igreja. Estava em curso a ‘revolução dos padres’. Em 1817, três sacerdotes do bispado de Olinda (Miguelinho, João Ribeiro e Roma) tinham sido fuzilados em Salvador por suas idéias em prol da independência do Brasil. Os seminaristas os consideravam mártires da libertação do Brasil e discutiam intensamente as novas idéias políticas provenientes da França, considerada ‘terra da revolução’. Liberdade, fraternidade, igualdade. Na cabeça desses estudantes, o seminário tinha a missão de formar um Brasil moderno, republicano, aberto, liberal, livre, fraterno, à imagem e semelhança da França. Mas, estranhamente, o jovem Ibiapina abandonou o seminário de Olinda e pediu acolhimento no convento da Madre de Deus, mantido por padres oratorianos no coração do Recife velho, perto do local onde hoje existe um shopping (Ilha do Recife). A Crônica das Casas de Caridade relata a razão dessa brusca mudança: ‘Não encontrando naquele templo da virtude e das ciências (o seminário de Olinda) a moralidade e religiosidade que esperava, demorou-se pouco e passou-se para o convento da Madre de Deus’ (edição 2006, 64). Ora, Ibiapina vivia rodeado de parentes apaixonados pelos ideais da revolução francesa. Seu pai morreu na luta da Confederação do Equador e seu irmão, também revolucionário, foi exilado para a Ilha Fernão de Noronha, onde faleceu ‘em luta com as ondas’ (Crônica, edição 2006, 65). No dia 13 de janeiro de 1825, Frei Caneca foi fuzilado no Forte de Recife, bem perto do convento da Madre de Deus, onde Ibiapina vive. Mais adiante (veja: a originalidade de Ibiapina) comento essa decisão por parte do jovem, então com 18 anos.
Em 1825, diante da penúria em que se encontrou sua família depois da morte do pai, ele foi obrigado a interromper os estudos e voltou ao Ceará para cuidar da mãe e de irmãos menores. Mesmo assim, Ibiapina, poucos anos depois, conseguiu retornar a Olinda, desta vez não para estudar filosofia, mas para estudar direito, pois tinha de sustentar a família que vivia na pobreza. Naquele tempo, algumas dependências do antigo colégio jesuítico foram cedidas para abrigar a primeira faculdade de direito do Brasil (a de São Paulo é da mesma época). Em 1834, ele obteve a ‘carta’ de Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas e se tornou logo depois lente na mesma faculdade onde estudara. Em pouco tempo, ele foi eleito deputado cearense à Assembléia geral do Brasil (no Rio de Janeiro) e, no ano seguinte, juiz de direito e chefe da polícia em Quixeramobim, interior do Ceará. Foi uma ascensão vertiginosa para um jovem de vinte e oito anos. Mas aí começaram os conflitos. O então presidente da Província do Ceará, padre Martiniano de Alencar (pai do romancista José de Alencar), quis que ele atendesse à vontade de um coronel local de Quixeramobim e condenasse um rapaz acusado de roubar um cavalo de dito coronel. Ao invés de seguir a orientação de seu superior, Ibiapina instalou um processo judicial e absolveu o rapaz. Com isso, o presidente da província passou a hostilizá-lo e Ibiapina teve de abandonar sua terra natal. Ele passou a exercer a profissão de advogado e fixou moradia em Areia, uma vila próspera do brejo paraibano formada por uma burguesia de senhores de engenho de açúcar (produção de rapadura) e ‘casas de farinha’. Mas aí entrou de novo em conflito com a ‘boa sociedade’, desta vez por ter ‘beneficiado’ um assassino. Ao voltar da roça, um camponês tinha encontrado sua mulher com outro homem. Imediatamente disparou a espingarda, matando o ‘adúltero’. Ibiapina alegou forte pressão psicológica e fez com que não se condenasse o rapaz como assassino culposo. Ele teve de sair de novo e resolveu exercer a advocacia em Recife. Mas os problemas não cessaram. Por onde ele procurava fazer justiça, encontrava obstáculos insuperáveis. Quem decidia sobre vida e morte era o coronelismo, não a justiça. Já que ele, ao longo de uma já larga carreira, só conseguira encontrar dificuldades e conflitos com autoridades e colegas, Ibiapina pensou em dar tempo ao tempo e se recolheu numa pequena propriedade em Caxangá, bairro de Recife. Passando de decepção em decepção, ele sente a necessidade premente de silêncio e reflexão.
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Ibiapina 02: A virada
Por Eduardo Hoornaert
Amargurado com as injustiças que encontra por todo canto, Ibiapina compra um pequeno sítio em Caxangá, perto de Recife. Hoje a Avenida Caxangá é uma das principais vias de Recife, dá acesso a Camaragibe e daí ao interior do estado. Durante três anos (1850-1853) ele fica aí numa reclusão só interrompida pela assistência à missa e por rápidas saídas para fazer compras. Ele lê a ‘Imitação de Cristo’ de Tomás a Kempis, um texto do século XIV que deve ter chegado a seu conhecimento nos anos de permanência no convento da Madre de Deus, em contacto com os padres oratorianos do Convento. A espiritualidade dos padres oratorianos contrastava com a das tradicionais ordens religiosas do Brasil colonial, principalmente os carmelitas, franciscanos e beneditinos. Era uma espiritualidade herdeira da chamada ‘devoção moderna’, ou ‘vida comum’, um movimento leigo atuante no sul da atual Holanda (donde provém Tomás a Kempis) nos últimos séculos da idade média (séculos XIV e XV). A idéia básica é que o ‘mundo’ também é lugar de santificação, não só os conventos. Nem todos(as) têm condições de viver em convento ou freqüentar a igreja. A grande maioria vive a vida toda no trabalho, na cozinha e na oficina, no comércio e na lavoura. Na casa e no casamento, afinal. Eis o lugar ‘comum’ da santificação das pessoas comuns, escreve Tomás a Kempis. Eis uma idéia simples e fundamental, defendida desde muitos séculos pelos melhores mestres espirituais. Já no século VII, por exemplo, um famoso mestre espiritual escreveu: Se todos compreendessem, ninguém deixaria o mundo.
Esse verso consta da ‘Escada da Ascensão divina’, da autoria de João Clímaco (579-649) e ele parece talhado para definir o clima espiritual em que Ibiapina passa seus três anos de reclusão. Ao longo de suas meditações e reflexões sobre sua vida passada, ele se emociona: como o mundo anda mal! A Crônica tem um texto sobre esse estado de espírito: ‘ele (Ibiapina) tinha entrado no amargo de nossa sociedade, tinha visto em todas as suas faces, em toda a sua hediondez, a miséria em que se debatem as classes menos favorecidas da fortuna, ele tinha visto milhares de infelizes órfãos, arrastando os andrajos da miséria, a tiritar de fome e frio’ (edição 2006, 75). Ibiapina chora ele conquista o ‘dom das lágrimas’ (como dizem os mestres espirituais). Emerge aos poucos a figura do missionário.
‘É mais útil ser missionário que advogado’, pensa Ibiapina. Observe-se que ele utiliza muito o termo ‘útil’, uma palavra-chave da ‘devoção moderna’. A vida tem de ser ‘útil’, a espiritualidade também. Eis uma espiritualidade que permeia a Crônica das Casas de Caridade e que contrasta com aquela que caracteriza a maioria dos missionários que na época andam pelos sertões nordestinos, principalmente os capuchinhos. Esses costumam recorrer à ‘pastoral do medo’, falam em condenação eterna no inferno, pecado, fim do mundo, demônios e tentações. Ibiapina não. Não existem ameaças apocalípticas nas falas de Ibiapina. Ele trata do trabalho e da vida comum de pessoas comuns. Padre Cícero, por exemplo, se mostra nesse ponto mais ‘capuchinho’ que o ‘oratoriano’ Ibiapina. Dona Maria da Conceição Lopes Campina, uma órfã amparada pelo padre Cícero, que reuniu muito ditos dele, lembra como o referido padre ameaçava o povo com as penas do inferno (Voz do Padre Cícero, Edições Paulinas, São Paulo, 1984, 178). Ele dizia que a cidade de Juazeiro era uma arca de Noé no meio do dilúvio de pecados que inunda o mundo, o último refúgio de Deus no mundo perverso que aguarda os horrores medonhos que acompanham a revelação apocalíptica. A visão sombria de padre Cícero está na linha de toda uma história da tradicional pastoral sertaneja católica. Essa não é a metodologia de Ibiapina e por isso se pode dizer que ele inova e até hoje tem coisa nova a nos dizer.
Enquanto o advogado em crise está meditando sobre tudo isso, o bispo de Olinda, informado acerca de um leigo culto e piedoso, que não perde uma missa na igreja de São José e é de um comportamento exemplar, o convida para se tornar padre. Pois faltam padres cultos e piedosos. O procedimento pode ser simples, pois o eventual candidato já domina o latim e está por dentro do direito. Ibiapina aceita e, após um breve tempo de preparação, é ordenado sacerdote na Sé de Olinda (1854).
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Ibiapina 03: missionário
Por Eduardo Hoornaert
A primeira nomeação de Ibiapina é a de professor de eloqüência sacra no seminário de Olinda, mas ele é rapidamente promovido a vigário geral do bispado. Será que seu destino é o trono episcopal? Tudo indica que o bispo que o ordenou pensa assim. Mas aí aparece o vibrião colérico. Quando um colega, vigário no interior de Pernambuco, o informa que no distrito de Gravatá (trata-se de Gravatá de Ibiapina, não confundir com a cidade de Gravatá, no interior de Pernambuco) apareceu um surto de cólera e que muita gente está morrendo por absoluta falta de infra-estrutura para combater a terrível epidemia, Ibiapina não hesita. Ele não tinha chegado à conclusão, durante seu refúgio de Caxangá, que não se ordenaria para seguir uma carreira eclesiástica, mas por seguir uma vida ‘útil’? Em 1860, seis anos após sua ordenação sacerdotal, ele penetra no interior e nunca mais retorna. Em Gravatá, ele ‘abre missão’ segundo a tradição. Mas é uma missão diferente, uma missão ‘útil’. Ibiapina alia o trabalho espiritual (orações, sacramentos, sermões, penitências, procissões) ao trabalho material: ele comanda a construção de um hospital provisório e de um cemitério. Escreve a Crônica: ‘(Ibiapina) tratou de associar obras espirituais (morais) e materiais, como (construção de) igrejas, cemitérios e açudes’ (edição 2006, 73). O termo ‘cemitério’, recorrente na Crônica, significa quase sempre um cemitério para coléricos falecidos, construído com pressa por um mutirão (trabalho comunitário) integrado no organograma da missão ‘moral e espiritual’. A missão ibiapina é uma grande inovação em termos de trabalho social e educacional. Ao mesmo tempo em que declara guerra ao pecado, Ibiapina declara guerra à doença, ao abandono, à falta de coesão social. Em Gravatá, tudo tem de andar depressa. Primeiramente, enterrar dignamente os falecidos. Depois separar, por meio de um hospital, os contaminados dos saudáveis. Finalmente tentar erradicar o foco da cólera. Ibiapina insiste: ‘é preciso beber água pura, a água de lagoas e rios não merece confiança’. Ele fala de forma pragmática, não recorre a grandes palavras nem solenes proclamações de princípios. O missionário não discute, ele age. Em muitos lugares não há nem hospital nem cemitério. Seu adversário não é o protestante nem o espírita, é a cólera que devora a vida do povo, é a falta de higiene e educação. Ibiapina se erige no meio do povo como um ‘irmão da vida comum’, fica acima da clausura entre sacerdote e leigo, religião e ação social. Quem quiser colaborar com ele, seja católico ou protestante, é bem-vindo.
Durante vinte anos, as viagens missionárias de Ibiapina seguem o programa traçado em Gravatá (1860). Ele não tem plano pré-estabelecido, mas obedece aos apelos da necessidade. Fiel aos ditames do ‘dom das lágrimas’, ele age impelido pela emoção. Quando toma conhecimento da triste sorte das moças do interior, condenadas a uma vida de muito trabalho e pouco respeito, ele se mete a fundar vinte e duas Casas de Caridade espalhadas pelo interior nordestino, de Bezerros (PE) no sul (1866) a Acaraú (CE) no norte (1860), de Pilões (PB) no leste (1860) a Crato (CE) no oeste (1869). Um trabalho gigantesco, cuja dimensão geográfica está traçada no pequeno mapa que acompanha a edição 2006 da Crônica. Fica difícil avaliar as dimensões organizatórias e financeiras de uma obra desse vulto. Quando ouve dizer que, na localidade onde pretende missionar, existem rixas e violências entre famílias rivais de fazendeiros, ele manda cavar um fosso na praça pública. Aí têm de ser enterradas todas as armas existentes na vila. Senão, o missionário não ‘abre missão’. Quando chega num lugarejo onde as pessoas não se falam entre si, ele manda que todos se abracem antes de abrir missão. Quando não existe água boa, ele manda cavar uma cacimba em ritmo de mutirão, um trabalho que ocupa as pessoas durante o tempo todo de sua permanência. Manda fazer diques para formar açudes, construir pontes, estradas e canais de irrigação. Mas o trabalho mais complicado consiste em erigir igrejas. Diversas igrejas ibiapinas ainda funcionam hoje como igrejas paroquiais, elas costumam ser amplas e bem construídas (como a igreja de Bananeiras no brejo paraibano). O balanço final das realizações materiais do missionário é impressionante: vinte e duas Casas de Caridade, dez igrejas, dez açudes, nove cemitérios, quatro hospitais, uma casa paroquial, uma cacimba pública, até um gabinete de leitura em Crato (Crônica, 2006, 242).
Em seu livro ‘A missão ibiapina’, Ernando Teixeira descreve a missão de Bananeiras (PB) em 1863 (pp. 45-50), a mais detalhadamente descrita na Crônica. Chegando à cidade, o missionário percebe que as pessoas vão à missão como se fossem a uma festa, e manifesta logo sua insatisfação: ‘sendo assim eu me retiro e deixo de pregar aqui’ (p. 45). A missão não é uma festa. O missionário sabe que a matriz está desmoronada e ele pensa num mutirão para reconstruí-la. No sermão de abertura da missão, ele explica que o trabalho será muito pesado e que ele conta com a colaboração de todos e todas. O resultado é impressionante: no dia seguinte oito mil pessoas se aglomeram na praça e começam a cavar o chão repleto de ossos em torno da antiga matriz (antigamente o entorno das igrejas servia de cemitério). As moças mais ‘delicadas’ do lugar trabalham ao lado das mais humildes. O sucesso é total e, no final da missão, ‘duas virgens da principal família despiram as galas, os enfeites e as esperanças ilusórias do mundo e se recolheram na Santa Casa de Santa Fé (atual Arara, a uns 15 km. de Bananeiras), situada num terreno cedido pela família Cunha Lima (pp. 47-48). Essa mesma família cuidará do sustento dessa casa nos últimos anos da vida do missionário (1880-1883), o que constitui um encargo enorme, pois na época a casa reúne nada menos que 200 pessoas. Eis um exemplo concreto de como Ibiapina une o espiritual (orações, sacramentos, sermões, penitências, procissões) ao material (construção de hospitais, cemitérios, açudes, capelas, estradas, pontes, canais de irrigação, sem esquecer as casas de caridade). Aproveitando a capacidade aglutinadora das santas missões, ele organiza mutirões, (um tipo de trabalho comunitário herdado dos índios). A missão, ao mesmo tempo, declara guerra ao pecado e à doença, ao abandono, à miséria. Ibiapina não é homem de grandes palavras ou solenes proclamações, mas de ações concretas. Ele tem autoridade e consegue dinamizar a capacidade humana em colaborar, trabalhar de graça, unir esforços, ser honesto, respeitar a lei e a justiça, respeitar os outros, sensibilizar-se com doentes, inválidos e pobres em geral.
Assim, Ibiapina vai percorrendo os sertões nordestinos, num traçado zigue-zague, obedecendo a convites feitos por vigários ou fazendeiros. Desse modo ele acaba percorrendo praticamente todo o interior do Nordeste. Não só atua no Cariri (Ceará) e na região da Borborema (Paraíba), os dois principais pólos de sua atuação, mas também nos sertões e brejos paraibanos e pernambucanos, diversos lugares do Rio Grande do Norte (Açu, Mossoró e Macau), do norte do Ceará (Fortaleza, Sobral, Acaraú), assim como do Piauí (Picos, Patos). Ele se torna referência para figuras religiosas marcantes, como padre Cícero de Juazeiro e beato Antônio Conselheiro de Quixeramobim (falecido em Canudos na Bahia). Eis o líder nordestino que inspirou José Comblin nos últimos 35 anos de sua vida.
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Ibiapina 04: Intuições Ibiapinas
Por Eduardo Hoornaert.
Na biografia de Ibiapina existem, no meu entender, pelo menos três momentos em que ele manifesta uma intuição incomum. A primeira acontece quando ele tem apenas 18 anos (em 1823). Como já escrevi acima, o jovem estudante abandona o seminário de Olinda e vai morar com os padres oratorianos em Recife. No seminário de Olinda fervem as novas idéias da revolução francesa (final do século XVIII). O livro do professor Siqueira ‘Os padres e a teologia da ilustração: Pernambuco 1817’ (Editora Universitária UFPE, Recife, 2009) expõe amplamente o tema. Ibiapina não se entusiasma com a teologia da ilustração de Olinda, nem com as grandes idéias libertárias que afetam a burguesia de sua época, o que não deixa de ser estranho para quem vem de um ambiente familiar marcado pelas idéias francesas. Seu pai e irmão lutam e morrem por idéias libertárias. Ibiapina, pelo contrário, se posiciona de forma independente, não adere aos grandes ideais burgueses. Parece que não lhe interessam esses grandes programas e que ele prefere se formar fora dessas ‘brigas de gente grande’. Podemos ver nisso, desde já, os esboços da futura opção pela gente miúda da sociedade? Mais tarde, Joaquim Nabuco dará implicitamente razão a Ibiapina ao escrever: ‘As revoluções brasileiras são ondulações do que se passa em Paris’. Elas não combinam com a realidade do país.
O segundo momento é o da crise dos anos 1850-53, que já descrevi nas considerações aqui apresentadas. Com 43 anos de vida, Ibiapina resolve parar, o que não é comum para uma pessoa que está na idade em que o corpo está no auge de suas potencialidades. Na idade em que a maioria das pessoas navega a todo vapor numa carreira já em pleno curso, ele resolve parar, dedicar tempo para ver o que significa a crise que está sentindo dentro de si e quais são as eventuais perspectivas. Ele sente que se esgotou a carreira de advogado. É preciso pensar em algo que seja mais ‘útil’ para a sociedade. É preciso penetrar mais no universo dos pequenos, das pessoas comuns. Em 1854, ele abraça o sacerdócio.
Penso que Ibiapina vislumbra uma terceira encruzilhada por ocasião da bem-sucedida missão de Bananeiras (1863), já descrita aqui. O sucesso da missão lhe indica a possibilidade de ir além do trabalho esporádico de viagens a convite de vigários ou fazendeiros e de iniciar algo mais fundamental no plano educacional. Pois as Casas de Caridade, na mente do missionário, são antes de tudo casas de educação e formação da juventude. Nelas se experimentam métodos totalmente novos para a sociedade do século XIX, não só no plano propriamente educacional como também nos planos do trabalho (que deixa de ser escravo), da posição da mulher (que deixa de ser secundaria) e da prática religiosa (que deixa de ser puramente ritual). Num tempo em que praticamente todas as instituições brasileiras funcionam na base de trabalho escravo, as Casas de Caridade não recorrem a escravos para execução dos trabalhos manuais. O primeiro biógrafo do padre-mestre, o autor paraibano Celso Mariz (1942), é taxativo: ‘A instituição não recebia de presente, não comprava e não possuía escravos’ (‘O padre Ibiapina, um apóstolo do Nordeste’, Gráfica A União, João Pessoa, 1942, 257). Eis um ponto fundamental, visto o caráter escravagista da sociedade brasileira. Podemos dizer que as Casas de Caridade do padre Ibiapina seguem, já no século XIX, um modelo ainda não alcançado nos dias de hoje nas famílias brasileiras de classe média. Um segundo ponto em que Ibiapina está bem à frente de seu tempo consiste na atenção dada à mulher, seus problemas e suas potencialidades. Cabe registrar aqui que no interior do Nordeste, até 1851, só existe uma escola (em Pernambuco) voltada para o atendimento de meninas pobres. Mesmo assim, essa escola não cuida do ensino profissional, em contraste com as Casas de Caridade, que ensinam leitura, escrita, ofícios domésticos, industriais e agrícolas e chegam mesmo a formar ‘mestras públicas’. Eis um assunto ainda não suficientemente pesquisado dentro de uma perspectiva feminista. Ibiapina demonstra ‘vontade política’ de investir em educação feminina e nisso continua pioneiro, mesmo nos dias de hoje. No tocante à religiosidade se registra igualmente novidade nas Casas de Caridade, pois nelas não se reprime o caráter lúdico e criativo do catolicismo popular. Não se interpretam as imagens de Jesus crucificado, Nossa Senhora das Dores e outros santos penitentes como símbolos de uma árdua batalha contra os antigos deuses do sertão, lúdicos e amantes da vida e de seus prazeres. Pelo contrário, abandona-se o penitencialismo de caráter negativo. O teor dominante da religiosidade praticada nas Casas de Caridade é construtivo. Ressoam cantos e músicas que são sempre de teor religioso, mas mesmo assim lúdicos e alegres. Um só exemplo tirado dos registros da Casa de Santa Fé. Nos últimos anos de sua vida, o missionário, já cansado das viagens, costuma passear com as meninas da Casa da Caridade nos domingos, depois da missa. Ele é levado em rede e, como escreve a Crônica, ‘as órfãs vão colhendo flores e cantando estes versos feitos por ele:
Meu Pai Padre Mestre
Vamos passear
O domingo é nosso
Vamos desforrar.
As campinas têm flores
Boas de apanhar
Atrás das borboletas
Que belo folgar (Crônica ed. 2006, 170 e 198).
Outro texto encantador é a narrativa da festa da Imaculada, no dia 8 de dezembro de 1879 (Crônica 2006, 202-212). Nela se evoca a natureza, um Deus que gosta de música e dança, a alegria do padre-mestre dentro de um ambiente de alegria, respeito e acolhimento.
Uma das novidades pouco conhecidas de Ibiapina consiste na fato que ele lida com beatos que em nada correspondem à imagem do beato rezador e simplório, fora da realidade da vida. Os ‘homens de Ibiapina’ são muito ativos, eles executam um amplo leque de atividades que vão desde o árduo trabalho de ‘tanger os burros’ a transportar cargas (bacalhau, legumes, água, farinha de mandioca, algodão, tecidos) ou pessoas (irmãs, órfãs) por longas distâncias, até a complexa administração das Casas de Caridade. O beato cuida dos roçados em torno da casa (deles provém grande parte do sustento), ele comercializa o que a casa produz em termo de renda, labirinto, crochê, chapéu de palha e tecidos finos e, em determinados casos, ainda fica responsável pelas finanças da casa.. Há beatos que viajam na qualidade de esmoleres, empreendem longas viagens em busca de dinheiro a sustentar as casas. Há beatos ‘esmolando’ (o verbo é típico da linguagem utilizada na Crônica) nas fazendas ao longo do rio São Francisco e mesmo em Rio de Janeiro, capital do país. O beato ibiapino é um voluntário sem estatuto fixo nem regulamentação trabalhista. Tudo se baseia no voluntariado. Não se compreende facilmente como esses beatos, que são numerosos, conseguem executar tarefas de tanta abrangência e complexidade. Há, por exemplo, senhores fazendeiros que passam a ser chamados beatos pelo povo no momento em que decidem colaborar com Ibiapina. Ele mesmo prefere chamá-los ‘gedeões’, aludindo ao primeiro juiz da história de Israel (Jz 5, 1-8, 35). Um famoso Gedeão é o fazendeiro Cunha Lima que doa as terras de Santa Fé ao missionário. A beata Júlia, frequentemente mencionada na Crônica, é também uma mulher da alta sociedade, esposa de um fazendeiro. O povo a chama de beata porque ela governa uma Casa da Caridade. Há beatos e beatas que dominam bem a língua portuguesa, escrevem com letra caprichada e redigem textos (como o da própria Crônica, principal fonte histórica acerca de Ibiapina). Quem quiser saber mais sobre esses beatos leia o artigo de Ernando Teixeira na Revista Eclesiástica Brasileira de outubro 2010: ‘Ibiapina e seus beatos’ (pp. 886-909). Aí se encontram muitos exemplos interessantes, provenientes de uma consulta direta da documentação histórica.
Em 1878, no final do mês de dezembro, já doente, Ibiapina menciona os obstáculos enfrentados para manter funcionando algumas Casas de Caridade. Ele alude à seca de 1877, relata as agruras causadas por falta de água e lamenta que a roupa tenha de ser lavada a três léguas de distância e a água para beber carregada por duas léguas. Ele menciona a precariedade dos recursos financeiros e a impossibilidade de se comprar cargas de água e alimentos. Ele deve ter pressentido as situações críticas que as Casas de Caridades teriam de enfrentar após sua morte.
Mas não é só por problemas econômicos que o pano desce sobre as obras de Ibiapina, logo depois de sua morte. É porque se inicia a romanização da igreja do Brasil, que consiste em implantar no país o modelo clerical europeu, nunca plenamente obedecido no Brasil colonial. As autoridades romanas descobrem irregularidades em toda parte. Para elas, o Brasil lusitano não conta, pois não vale nada. Elas resolvem ‘passar tudo a limpo’ e colocar a igreja ‘nos eixos’. O bispo tem de cuidar, antes de tudo, em fundar e organizar um seminário em moldes europeus (romanos ou franceses). Diante dessa nova lógica eclesiástica, as obras de Ibiapina sucumbem em pouco tempo, são desativadas ou destinadas a outros fins. As Casas de Caridade de Cajazeiras e Bezerros viram colégios, a de Sobral se torna Casa de Misericórdia (hospital), a de Cabaceiras Biblioteca Municipal. A grande Casa do Crato se transforma em Centro Social e hoje é sede da Universidade Regional do Cariri. Santa Fé na Paraíba vira casa paroquial e a Casa de Campina Grande é transformada em orfanato (funcionou desse modo até 1975). Um sinal significativo dessa romanização (ou europeização) pode ser visto por quem visita os dois grandes pátios internos do seminário da Prainha em Fortaleza. Aí se encontram as estátuas de santos franceses como o Cura d’Ars e São Vicente de Paulo, mas o visitante procura em vão uma referência às grandes figuras do Ceará católico: o padre Ibiapina, o padre Cícero e o beato Antônio Conselheiro. Mesmo assim, como escreve Ernando Teixeira no referido artigo da Revista Eclesiástica Brasileira, ‘o tempo de Ibiapina ainda não terminou’ (p. 196). Prova disso a ‘fase ibiapina’ da vida de José Comblin, uma história ainda não contada.
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Ibiapina 05: A Literatura
Por Eduardo Hoornaert
Existe uma literatura bastante consistente sobre José Antônio Pereira Ibiapina (1806-1883), mais conhecido como ‘padre Ibiapina’. O trabalho que divulgou pela primeira vez seu nome no mundo dos letrados foi a biografia publicada em 1942 pelo historiador paraibano Celso Mariz: ‘O padre Ibiapina, um apóstolo do Nordeste’ (Gráfica A União, João Pessoa), um estudo sólido que continua fundamental. Em 1996, quando a diocese de Guarabira (Paraíba) introduziu um processo de beatificação do padre junto ao Vaticano, o padre Francisco Sadoc de Araújo publicou o livro ‘Padre Ibiapina, peregrino da caridade’ (Edições Paulinas, São Paulo), que tem o mérito de integrar a ‘Crônica das Casas de Caridade fundadas pelo padre Ibiapina’, principal fonte histórica que possuímos sobre Ibiapina. Há duas edições dessa Crônica, ambas preparadas por mim: uma de 1981 (edições Loyola, São Paulo) e outra de 2006 (Secretaria de Cultura do Estado do Ceará). O autor cruza dados da Crônica com outros documentos históricos disponíveis, como os arquivos das Casas de Caridade de Santa Fé (Arara), Campina Grande e Pocinhos. Em 2008, Ernando Teixeira enriqueceu a essa literatura com seu trabalho ‘A missão ibiapina’ (Gráfica Editora Berthier, Passo Fundo, 2008), que oferece a melhor edição crítica e atualizada da literatura existente sobre a vida missionária (os últimos 30 anos). Além disso, o autor nos brinda com uma edição dos textos em grafia atualizada, excelente pontuação e divisão de frases e parágrafos, o que permite uma leitura fluente de documentos que antes só se liam com dificuldade. As numerosas notas de rodapé, minuciosamente redigidas, constituem em si mesmas um esboço biográfico de primeira classe, em diversos pontos mais preciso e detalhada que os trabalhos anteriores de Celso Mariz e Francisco Sadoc. Finalmente, Ernando Teixeira sustenta que toda a tradição literária originária em torno do missionário provém, em última análise, da Casa de Caridade de Santa Fé na Paraíba. Santa Fé é o nome de uma fazenda doada ao padre Ibiapina pela família Cunha Lima, no sítio Arara (município de Solânea, no brejo paraibano, a 50 km. aproximadamente de Campina Grande) depois da grande missão em Bananeiras no ano 1863. Ai o missionário fixou o centro de sua obra quando não tinha mais condições de andar a pé pelos sertões. Pois ele andava a pé e costumava dizer: ‘as ovelhas não têm de carregar (de rede) o pastor, é o pastor que tem de carregar as ovelhas’. Só na sua última viagem (de Triunfo em Pernambuco a Santa Fé) ele foi carregado de rede, pelo que me consta. Com o tempo, a tradição literária proveniente de Santa Fé se espalhou pelas Casas de Caridade, feitas principalmente na Paraíba e no Cariri cearense. Hoje, o corpo do padre Ibiapina está enterrado em Santa Fé e foi aí que o padre José Comblin desejou ser enterrado também, ao lado do ‘padre mestre’.
Gostaria de chamar aqui a atenção para uma dimensão pouco conhecida dessa literatura. Ela tem valor antropológico e historiográfico importante, pois relata a presença de remanescentes indígenas nos sertões, ainda nas últimas décadas do século XIX. Isso em contraste com os documentos oficiais que,
desde o início do século, afirmam que ‘não há mais índios nos sertões’. Em 1863, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, da Diretoria dos Índios do Ceará, declara: ‘Dos índios só restam o céu e a terra e a lembrança de suas espantosas desgraças’. Percorrendo os sertões, Ibiapina descobre um universo indígena desconhecido e desse modo nos remete a uma antiga e esquecida história, a da ‘guerra dos bárbaros’ de 1710-1720 (a expressão é do historiador Taunay). Essa guerra foi um verdadeiro cataclismo para o diversificado mundo indígena do Nordeste (só no Ceará havia 21 povos que não pertenciam à família linguística tupi). Essa história é mal conhecida: a documentação fundamental acerca do episódio nem foi publicada no Brasil, só existe em publicações portuguesas. A historiadora portuguesa Virgínia Rau editou em Lisboa dois volumes com os documentos da Casa de Cadaval, uma família portuguesa possuidora de terras no Piauí e no Ceará, que dispunha de um copista que assistia às discussões sobre questões brasileiras levadas ao conhecimento do rei na ‘Mesa de Consciência e Ordens’ de Lisboa e anotava o que interessava. Nessa documentação se encontram repetidas queixas de sacerdotes seculares contra os jesuítas de Ibiapaba (no norte do Ceará) que armavam ‘índios mansos’ contra ‘índios brabos’ e desse modo contribuíam para o desfecho trágico da ‘guerra dos bárbaros’ (também chamada de ‘confederação do Cariri’, ou ainda ‘levante de Mandu Ladino’). A referida documentação revela a dimensão do drama que se abateu sobre o Nordeste indígena nos primeiros dois decênios do século XVIII e explica o ‘silêncio indígena’ que doravante pairou sobre toda a região. Já que Ibiapina andou por muito tempo pelos sertões, ele teve oportunidade de encontrar remanescentes de populações indígenas, seja em pé de serra ou cabeceira de rio. Ele os encontrou na encosta da Chapada do Araripe, da Serra dos Cariris Novos, da Serra dos Cariris Velhos ou da Serra da Borborema, ou ainda nas cabeceiras do Rio Salgado (no Cariri cearense), dos rios Pajeú, Taperoá, Capibaribe, Paraíba e (principalmente) Curimataú. Eram grupos esparsos, medrosos e miseráveis. O missionário não era antropólogo, mas mesmo assim prestou um serviço ímpar à antropologia cultural do Nordeste e aos estudos brasileiros em geral ao revelar como os habitantes originais da terra sobrevivem por meio da mestiçagem, do sincretismo e do lento e penoso processo de integração numa sociedade que cultiva sentimentos negativos a seu respeito.
Eu sou o poeta e escritor, Zé Santana, já escrevi 11 livros: gravei 12 cds e tenho publicado 13 cordéis. Um dia uma grande missionária das Irmãs Sacramentinas, a quem eu quero muito bem, pena que foi transferida de Brejo Santo=Ce, me parece que foi pra Bahia. Um dia ela me disse Zé, quando vai acontecer um PADRE IBIAPINA em Brejo Santo? Sinceramente, não entendi bem sua explanção, então, procurei saber, quem de fato, era o homem IBIAPINA, comecei minha pesquisa que já estou em fase terminal. Estou na Cidade de Natal em passeio e Pesquisa, mas sou Cearense, e estou agraciado pelo que pesquisei e soube sobre essa figura carismática, de tino e sabedoria,o homem que viveu a grandeza da palavra ORAÇÃO, rezar e agir. Foi valioso conhecer e estudar sua vida e obra, pude vê um homem culto e inteligente, tragado pelas dores.Foi fantástica sua atuação no mundo, foi um novo santo, que Deus escolheu na sua era, pois para cada era Deus manda seus santos extraordinários, e IPIAPINA, é bom pensar na sua beatificação, eu vou rezar por isso, como rezo pelo meu padrinho PADRE CÍCERO, quem muitoa aprendeu com IBIAPINA, Deus seja louvado. Se eu fosse o Governo do ESTADO DO CEARA, eu faria um banco de dados, e centro cultural, mostrando as personalidades historicas, forças motriz no avanço nordestino, e com certeza PADRE IBIAPINA, seria linha de frente, em seguida vinha o PADRE CÍCERO, depois ANTONIO CONSELHO e também ZÉ LOURENÇO, que apesar de ser paraibano lutou pela comunidade DO CALDEIRÃO NO CEARÁ( Zé Lorenço é também um patriomônio, CEARENSE.
ResponderExcluirThe Poet and writer,
ZS >>> Zé Santana, O Cavalheiro do Azul( Devoto de Nossa Senhora das Graças)
In Brejo Santo- Ce. Brazil.