Ivone Gebara
Escritora, filósofa e teóloga
Adital
É com muito constrangimento que muitas mulheres católicas leram a
notícia publicada em vários jornais nesse último final de semana de que a
Arquidiocese de Madri com aprovação papal autorizou a concessão do
perdão e indulgência plenária às mulheres que confessarem o aborto por
ocasião da visita do papa. A impressão que tivemos é que o papa, o
Vaticano e alguns bispos gostam de brincadeiras de mau gosto com as
mulheres. Não sabemos em que mundo esses homens vivem, quem pensam que
são e quem pensam que somos!
Primeiro, concedem o perdão a quem pode viajar para assistir a
missa do papa e passar pelo "confessionódromo” ou pelo conjunto de
duzentos confessionários brancos instalados numa grande Praça pública de
Madri chamada "Parque do Retiro”. O perdão deste "pecado” tem local,
dia e hora marcada. Custa apenas uma viagem a Madri para estar diante do
papa! Quem não faria o esforço para tão grande privilégio? Basta ter
dinheiro para viajar e pagar a estadia em algum hotel de Madri que o
perdão poderá ser alcançado. Por isso, nos perguntamos: que alianças a
prática do perdão na Igreja tem com o capitalismo atual? Como se pode
viver tal reducionismo teológico e existencial? Quem está tirando
benefícios com esse comportamento?
Segundo, têm o desplante de afirmar que o perdão deste "crime
hediondo” como eles costumam afirmar, é dado apenas por ocasião da
visita do papa para que nessa mesma ocasião as fiéis pecadoras obtenham
"os frutos da divina graça”, confessando o seu pecado. Como entender que
uma falta é perdoada apenas quando a autoridade máxima está presente?
Não estariam reforçando o velho e decadente modelo imperial do papado?
Quando o Imperador está presente tudo é possível até mesmo a expressão
da contradição em seu sistema penal.
Não quero retomar os argumentos que muitas de nós mulheres sensíveis
às nossas próprias dores temos repetido ao longo de muitos anos numa
breve reflexão como esta. Mas esse acontecimento papal madrilenho,
infelizmente, só mostra mais uma vez, um lado ainda bastante vivo no
Vaticano, ou seja, o lado das querelas medievais em que questões
absolutamente sem peso na vida humana eram discutidas. E mais, demonstra
desconhecer as dores femininas, desconhecer os dramas que situações de
violência provocam em nossos corpos e corações. Ao conceder o perdão ao
"crime” do aborto na linguagem que sempre usaram, de forma elitista
revelam o rosto ambíguo da instituição religiosa capaz de ceder ao
aparato triunfalista quando sua credibilidade está em jogo. Podem
abençoar tropas para matar inocentes, enviar sacerdotes como capelães
militares em guerras sempre sujas, fazer afirmações públicas em defesa
da instituição condenando pobres e oprimidas, abrir exceções à regra de
seus comportamentos para atrair jovens alienados dos grandes problemas
do mundo ao rebanho do Papa. A lista dos usos e costumes transgressores
de suas próprias leis é enorme...
Por que reduzir a vida cristã a pão e circo? Por que dar um
espetáculo de magnanimidade em meio à corrupção dos costumes? Por que
criar ilusões sobre o perdão quando o dia a dia das mulheres é cheio de
perseguições e proibições às suas escolhas e competências?
Somos convidadas/os a pensar no aspecto nefasto da posição do papa e
dos bispos que se aliaram a ele. O papa não concedeu perdão e
indulgência total ou plena "urbe et orbe”, isto é, para todas as
mulheres que fizeram aborto, mas apenas àquelas que se confessaram
naquele momento preciso e por ocasião da visita do papa à Espanha. Não é
mais uma vez a utilização das consciências especialmente das mulheres
para fins de expansionismo de seu modelo perverso de bondade? Não é mais
uma vez abrir concessões obedecendo a uma lógica autoritária que quer
restaurar os antigos privilégios da Igreja em alguns países europeus?
Não é uma forma de querer comprar as mulheres confundindo-as diante da
pretensa magnanimidade dos hierarcas?
Será que as autoridades constituídas na Igreja Católica e de outras
Igrejas são ainda cristãs? São ainda seguidoras dos valores éticos
humanistas que norteiam o respeito a todas as vidas e em especial à vida
das mulheres?
Creio que mais uma vez somos convocadas/os a expressar publicamente
nosso sentimento de repúdio à utilização da vida de tantas mulheres como
pretexto de magnanimidade do coração papal. Somos convidadas/os a
tornar pública a corrupção dos costumes em todas as nossas instituições
inclusive naquelas que representam publicamente nossas crenças
religiosas. Somos convidadas/os a ser o corpo visível de nossas crenças e
opções.
Fazendo isso, não somos melhores do que ninguém. Somos todas
pecadoras e pecadores capazes de ferir uns aos outros, capazes de
hipocrisia e mentira, de crueldade e crueldade refinada. Mas, também
somos capazes de dividir nosso pão, de acolher a abandonada, de cobrir o
nu, de visitar o prisioneiro, de chamar Herodes de raposa. Somos essa
mistura, expressão de nosso eu, de nossos deuses, dos espinhos em nossa
carne convidando-nos e convocando-nos a viver para além das fachadas
atrás das quais gostamos de nos esconder.
21 de agosto de 2011.
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