Fonte: Adital
Francisco de Aquino Júnior
Doutor em teologia pela Westfälische
Wilhelms-Universität de Münster (Alemanha), professor de teologia na
Faculdade Católica de Fortaleza e presbítero da Diocese de Limoeiro do
Norte – CE
Na
última Assembleia Geral da CNBB, maio de 2011, os bispos aprovaram as "novas”
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil para os próximos
cinco anos (2011-2015). Do ponto de vista da escrita, é um texto relativamente
pequeno, leve, fluente e de fácil leitura. Do ponto de vista teológico-pastoral
–muito marcado pelos escritos e pelas preocupações e orientações pastorais de
Bento XVI e muito afinado com as tendências intraeclesiais dos novos movimentos
eclesiais– parece consolidar um "ajuste pastoral” na igreja do Brasil,
caracterizado por certa relativização dos problemas do mundo e por uma
preocupação excessiva com vida interna da Igreja, concentrando ai todas
"urgências na ação evangelizadora”.
Não
vamos analisar detalhada e exaustivamente o texto, mas simplesmente explicitar
sua estrutura ou lógica interna e mostrar como ela consolida um "ajuste
pastoral” na Igreja do Brasil, em curso nas últimas décadas.
Nas
trilhas do Documento de Aparecida, o texto fala de nosso tempo como "um tempo
de transformações profundas”, tão profundas que pode ser caracterizado como uma
"mudança de época”, mais que uma "época de mudanças” (19). E continua:
"mudanças de época são, de fato, tempos desnorteadores, pois afetam os
critérios de compreensão, os valores mais profundos, a partir dos quais se
afirmam identidades e se estabelecem ações e relações” (20) Duas "atitudes”
fundamentais, segundo o texto, marcam o nosso tempo: "agudo relativismo” e
"fundamentalismos”. Atitudes que se desdobram em outras tantas como o "laicismo
militante”, a "irracionalidade da chamada cultura midiática”, o "amoralismo
generalizado”, as "atitudes de desrespeito diante do povo” e "um projeto de
nação que nem sempre considera adequadamente os anseios deste mesmo povo” (20).
Tudo
isso tem implicações na ação pastoral/evangelizadora da igreja: "mudanças de
época pedem um tipo específico de ação evangelizadora, a qual, sem deixar de
lado aspectos urgentes e graves da vida humana, preocupa-se em
ajudar a encontrar e a estabelecer critérios, valores e princípios. São tempos
propícios para volta às fontes e busca dos aspectos centrais da fé” (24); "ao
reconhecer a mudança de época como o maior desafio a ser atualmente enfrentado,
o discípulo missionário não se esquece das ameaças á vida de pessoas,
povos e até mesmo de todo o planeta. Estas ameaças permanecem e necessitam ser,
corajosa e profeticamente, enfrentadas. Contudo, neste enfrentamento, o
discípulo missionário se depara com a fragilidade dos critérios para ver,
julgar e agir” (27). "Quando a realidade se transforma, devem, igualmente, se
transformarem os caminhos pelos quais passa a ação evangelizadora [...].
Enquanto em outros períodos da história, os discípulos missionários
precisavam dar as razões de sua esperança como conseqüências de critérios
firmemente aplicados, em nossos dias, são os próprios critérios que vêm
experimentando abalo” (25). Neste contexto, recorrendo ao Documento de
Aparecida, fala de "conversão pastoral” (26, 34).
E
é aqui onde se explicita e se justifica "a grande diretriz evangelizadora que,
neste início de século XXI, acompanha a igreja: não colocar outro fundamento
que não seja Jesus Cristo”; "respondemos missionariamente à mudança de época
com o recomeçar a partir de Jesus Cristo” (24).
Neste
contexto, o documento aborda o que considera as "urgências na ação
evangelizadora”, sempre na perspectiva de resposta ao que considera o grande
desafio de nossa época, isto é, a necessidade de critérios de discernimento e
de ação: Igreja em estado permanente de ação[1]; Igreja: casa de iniciação à
vida cristã[2]; Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral[3];
Igreja: comunidade de comunidades[4]; igreja a serviço da vida plena para todos[5].
E indica algumas perspectivas de ação.
Certamente,não há uma negação nem uma ruptura
radical com a tradição eclesial/pastoral em curso nas últimas décadas, mas há, sem dúvida, um novo enfoque e uma
nova orientação/diretriz que, tomando emprestada a expressão usada por
Clodovis Boff para se referir à mudança eclesial/pastoral realizada pela
Conferência de Santo Domingo, poderíamos, com as devidas diferenças e
proporções, caracterizar como um "ajuste pastoral”[6] na Igreja do Brasil.
Por
um lado, afirma claramente que "olhar para a mudança de época e para o
necessário (re)enraizamento de critérios, longe de significar o afastamento dos
problemas concretos e urgentes da vida de nosso povo, significa buscar uma base
realmente sólida para enfrentá-los” (27). E sempre que fala do que considera o
desafio maior da época atual, faz uma ressalva: "sem deixar de lado...” (24);
"por certo [...] não se esquece...” (27).
Por
outro lado, insiste em que, não obstante a importância dos "problemas concretos
e urgentes da vida do nosso povo”, o desafio (ou a urgência) maior é outro:
"sem deixar de lado..., preocupa-se...” (24); "por certo..., contudo...” (27).
Na
verdade, este "ajuste pastoral” vem se dando lentamente nos últimos anos e já
aparece claramente delineado nas DGAE 2003-2006 quando, ao tratar das
exigências intrínsecas da evangelização, estabelece uma ordem/hierarquia na
qual o anúncio explícito de Jesus Cristo tem primazia absoluta: "a ordem
‘serviço-diálogo-anúncio-comunhão’ expressa, portanto, uma seqüência pedagógica
das exigências – todas elas essenciais – da evangelização. Do ponto de vista
das finalidades ou dos valores, porém, o anúncio do Evangelho deve ter primado
ou prioridade permanente. É para ele que se volta a evangelização ou missão”
(16)[7].
A
questão teológico-pastoral de fundo do que estamos chamando "ajuste pastoral”
da Igreja do Brasil é se a finalidade última da missão cristã é mesmo o anúncio
explícito de Jesus Cristo ou se inclusive a necessidade desse anúncio não se dá
em vista de algo mais fundamental e decisivo, do ponto de vista teológico, que
é a realização histórica do reinado de Deus. Não se deve esquecer que Jesus
nunca fez de si o centro de sua vida e missão. Viveu, morreu e ressuscitou por
causa do reinado de Deus. Por mais que tenha se entregado a ele e assim tenha
se identificado com ele (neste sentido, Orígenes podia falar de Jesus como autobasileia – o reinado de Deus em
pessoa), vivia e agia em função dele. O reinado de Deus e não Jesus mesmo
constituía o centro de sua vida e missão e, consequentemente, deve constituir o
centro da vida e da missão da Igreja – seu corpo vivo e atuante na história. E
por fidelidade ao próprio Jesus. Sem dúvida, a Igreja deve anunciar
explicitamente Jesus Cristo. Mas, precisamente, por causa e em função da
realização do reinado de Deus, cujo critério histórico, posto pelo próprio
evangelho, não é outro senão o caído à beira do caminho (Lc 10, 25-37), as
necessidades da humanidade sofredora (Mt 25, 31-46). Aliás, segundo o mesmo
evangelho, esse é, inclusive, o critério de encontro com e de fidelidade ao
próprio Jesus que se identifica com a humanidade sofredora. De modo que se o
desafio ou a urgência maior de nosso tempo, como afirmam as "novas” diretrizes,
diz respeito à necessidade de critérios de discernimento e de ação, estes já
estão postos pelo próprio Jesus no evangelho: as necessidades da humanidade
sofredora, com a qual ele mesmo se identifica. E ai de quem se escandalizar com
isso...
O
limite ou mesmo o desvio teológico-pastoral das "novas” DGAE, parece-nos,
provém de uma leitura insuficiente da realidade (culturalista) e, a partir
dela, de uma definição/escolha equivocada do desafio maior de nosso tempo
(relativismo) e da resposta pastoral a esse desafio (vida interna da Igreja).
O
capítulo que trata das "marcas do nosso tempo” considera a realidade meramente
do ponto de vista cultural e, nesse sentido, pode ser considerado como uma
abordagem culturalista e, enquanto tal, reducionista e mesmo falsificadora da
realidade. É curioso que o texto não faça praticamente nenhuma referência à
situação de miséria e pobreza no país, ás diversas formas de opressão e
exclusão... É a primeira vez que isso acontece num documento como esse (podem
consultar e verificar todas as diretrizes anteriores). Será que a realidade
pode ser reduzida à sua dimensão cultural? E as dimensões social, política e
econômica? Por que esse recorte ou reducionismo da realidade? Em todo caso, um
olhar culturalista sobre a realidade é insuficiente para captar as marcas mais
profundas do nosso tempo.
Essa
leitura culturalista da realidade condicionou, negativamente, a identificação
do drama ou do desafio maior do nosso tempo. Dá a impressão que o texto se
refere a um país do primeiro mundo, onde o problema da miséria e mesmo da
pobreza é praticamente inexistente (embora a situação venha mudando
consideravelmente nesses países nos últimos anos). Ou, o que parece ser o caso,
que a obsessão contra o relativismo moral (sexual, sobretudo) parece abafar o
grito dos pobres e oprimidos ou desviar a atenção dos pastores dos lamentos e
das necessidades maiores do nosso tempo que são os lamentos e as necessidades
da humanidade sofredora. O sinal e o desafio maior do nosso tempo continuam
sendo a injustiça social e não o relativismo.
Consequentemente,
a resposta pastoral adequada a essa realidade só pode ser o compromisso cada
vez mais intenso com os pobres e os oprimidos e o critério evangélico
fundamental que deve orientar a ação pastoral/evangelizadora da Igreja neste
contexto não pode ser outro senão a justiça aos pobres e oprimidos deste mundo.
Não aconteça que ocupada excessivamente com sua vida interna (bíblia, liturgia,
comunidades, missão etc), a Igreja passe à margem do Senhor que continua se
identificando com os caídos à beira do caminho...
O
risco das "novas” DGAE é esfriar e enfraquecer ainda mais a opção pelos pobres
e o compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna,
centrar ou mesmo fechar a Igreja sobre si mesma, comprometendo sua missão de
construção do reinado de Deus e sufocando-a com um conjunto de atividades
pastorais/evangelizadoras que no fim das contas acaba ironicamente reduzido
àquilo que as próprias DGAE querem evitar e/ou superar, isto é, uma pastoral de
mera "manutenção” ou "conservação” (26, 34).
Nem
sequer a quinta urgência na ação evangelizadora ("Igreja a serviço da vida
plena para todos”) evita sem mais esse risco. É que ela é apresentada de um
modo tão abstrato e gerérico que termina sendo ineficaz. Por um lado, ao
indicar perspectivas de ação, destaca algumas realidades que merecem uma
atenção especial: família (108), crianças, adolescentes e jovens (109),
trabalhadores/as (110), migrantes (111), populações indígena e africana (113),
natureza (114), universitários, mundo da comunicação, empresários, políticos
(117). Se tudo é prioritário (da criança ao idoso, do pobre ao empresário...),
que resta efetivamente da opção pelos pobres ou mesmo da opção preferencial
pelos pobres? Quando tudo é prioridade, nada mais é prioridade. E assim se
esvazia e se dissolve a opção pelos pobres... Por outro lado, quando se refere
ao enfrentamento das "urgências que decorrem da miséria e da exclusão”, o
documento fala do "gesto imediato da doação caritativa” e do "convívio,
relacionamento fraterno, atenção, escuta, acompanhamento nas dificuldades,
buscando, a partir dos próprios pobres, a mudança de sua situação” (71). É
verdade que "reconhece a importância da atuação no mundo da política” (71, 115)
e que recomenda o empenho "na busca de políticas públicas” (116), mas já não se
fala mais de transformação das estruturas da sociedade – um vocabulário
estranho e desconhecido no texto... Curiosamente, saiu do objetivo geral das
DGAE a perspectiva de colaboração na construção de uma sociedade justa e
fraterna ou solidária – algo presente desde as primeiras diretrizes... Por quê?
Que significa isso?
Por
tudo isso, cremos ser necessário fazer um ajuste
evangélico ao "ajuste pastoral” das "novas” DGAE que, sem negar a
importância de Jesus Cristo e de seu anúncio nem o cuidado com a vida interna
da comunidade eclesial, ponha no centro da vida e da missão da Igreja o que o
próprio Jesus pôs no centro de sua vida e missão: o reinado de Deus, cuja
característica fundamental é a justiça aos pobres e oprimidos deste mundo que
continuam, inclusive, o grande critério histórico de nossa fidelidade a Jesus
Cristo e à Causa pela qual viveu, morreu e ressuscitou.
Notas:
[1]
"Na medida em que as mudanças de época atingem os critérios de compreensão, os
valores e as referências, os quais já não se transmitem mais com a mesma
fluidez de outros tempos, torna-se indispensável anunciar Jesus Cristo” (32).
"Este é o grande serviço que a Igreja [...] é chamada a prestar neste momento
da história” (36).
[2] "Em outras épocas, era possível pressupor que o primeiro contato com a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo acontecia na sociedade [...] A mudança de época exige que o anúncio de Jesus Cristo não seja mais pressuposto, porém explicitado continuamente” (39). "Esta é a razão pela qual cresce o incentivo à iniciação á vida cristã” (40).
[3] "Vinculado com a iniciação à vida cristã, o atual momento da ação evangelizadora convida o discípulo missionário a redescobrir o contato pessoal e comunitário com a Palavra de Deus como lugar privilegiado de encontro com Jesus Cristo” (45). "É, pois, no contato eclesial com a Palavra de Deus que o discípulo missionário, permanecendo fiel, vai encontrar forças para atravessar um período histórico de pluralismo e grandes incerteza” (47).
[4] "Ao mesmo tempo em que se constata, nesta mudança de época, uma forte tendência ao individualismo, percebe-se igualmente a busca por vida comunitária” (56). "Em tempos de incerteza, individualismo e solidão, a presença de uma comunidade próxima à vida, às alegrias e à dores é um serviço que urge prestar ao mundo que necessita vencer a ‘cultura de morte’” (64).
[5] "O serviço testemunhal à vida, de modo especial à vida fragilizada e ameaçada, é a mais forte atitude de diálogo que o discípulo missionário pode e deve estabelecer com uma realidade que sente o peso da cultura da morte. Na solidariedade de uma igreja samaritana, o discípulo missionário vive o anúncio de um mundo diferente que, acima de tudo, por amor à vida, convoca á comunhão efetiva entre todos os seres vivos” (72).
[6] BOFF, Clodovis. O "Evangelho” de Santo Domingo: Os dez temas-eixo do Documento da IV CELAM. Petrópolis: Vozes, 1994, 26. "Com ‘ajuste pastoral’ entendemos a retomada do caminho já tradicional da Igreja latino-americana, mas dando-lhe uma outra direção, uma direção não contrária, mas diferente da estabelecida. Na verdade, trata-se de um redirecionamento global. Por ele, os bispos reassumem a caminhada que vem de Medellín, mas num outro contexto e por isso com outra sensibilidade, numa outra ótica” (Ibidem, 26s). Para Boff esse "ajuste pastoral” realizado por Santo Domingo se dá num duplo sentido. "Primeiro, ad intra, Santo Domingo reforça a Igreja-hierarquia, enfraquecendo a Igreja-Povo de Deus. Segundo, ad extra, a IV CELAM privilegia a dimensão propriamente evangelizadora da Igreja, enfatiza sua função especificamente religiosa e missionária [...], mas [...] não de modo a radicalizar a missão social da Igreja, mas antes a relativizá-la” (Ibidem, 27). No que diz respeito às "novas” Diretrizes, o "ajuste pastoral” tem a ver fundamentalmente com este segundo sentido a que se refere Boff.
[7] Essa ordenação/hierarquização das exigências constitui uma "novidade” carregada de significados e de conseqüências para a compreensão e dinamização da ação pastoral/evangelizadora. Desde o Plano de Pastoral de Conjunto, a Igreja do Brasil tomou como quadro de referência da ação pastoral o que, inicialmente, denominou as seis "linhas” da ação pastoral (1966-1970; 1971-1974; 1975-1978 e de 1979-1982) e, posteriormente, as seis "dimensões” da ação pastoral (1983-1986, de 1987-1990, de 1991-1994) ou as quatro "exigências” intrínsecas da ação evangelizadora (1995-1998; 1999-2002, 2003-2006; 2007-2010). E desde o início eram tratadas como linhas ou dimensões ou exigências constitutivas e complementares da ação da Igreja. Depois de Santo Domingo, as diretrizes começam a dar uma ênfase maior ao anúncio explicito de Jesus de Cristo – concretamente, a partir das diretrizes de 1995-1998. Mas é com as diretrizes de 2003-2006 que essa ênfase consolida uma compreensão de missão/evangelização centrada no anúncio explícito de Jesus Cristo. Certamente, essa sempre foi uma linha/dimensão/exigência intrínseca e constitutiva da ação pastoral/evangelizadora da Igreja. Mas uma dentre outras: serviço, diálogo, anúncio, comunhão – para usar a formulação das últimas diretrizes. Essa concentração e primazia do anúncio sobre as demais, entretanto, é algo "novo” e significa, na prática, uma "nova” orientação/diretriz para a ação pastoral/evangelizadora da Igreja no Brasil, o que estamos chamando aqui de "ajuste pastoral”.
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